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Um peixe de 200 quilos muito feio — mas delicioso — vira símbolo do desenvolvimento sustentável na Amazônia

O pirarucu tem potencial de se tornar uma sensação global, dizem os produtores. Mas problemas políticos, logística deficiente e outros desafios atrapalham.
Um pescador na reserva Piagacu-Purus, na Amazônia, coloca um pirarucu am seu barco.Ricardo Oliveira/AFP/via Getty Images
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Este artigo é parte da edição especial da AQ sobre desenvolvimento sustentável na Amazônia | Read in English

A primeira coisa que as pessoas tendem a notar no pirarucu, um peixe nativo da Amazônia, é que ele é absolutamente horroroso. Os peixes adultos podem atingir impressionantes 200 quilos e quase três metros de comprimento, o que, combinado com sua cara carrancuda, faz com que ele pareça uma versão amazônica do monstro do Lago Ness, nadando pelos rios de água doce da maior floresta tropical do mundo , emergindo a cada 10 minutos, aproximadamente, para se reabastecer de oxigênio (outro aspecto inusitado, ele está entre o cerca de 1% das espécies de peixes que respiram ar).

Mas o pirarucu tem uma característica ainda mais surpreendente, conhecida tanto pelas comunidades ribeirinhas quanto pelos amantes da gastronomia sofisticada de cidades longínquas: o peixe é uma delícia. Com uma carne de lascas brancas e consistência macia, saboroso sem ser avassalador, o pirarucu pode ser servido em moquecas, a típica caldeirada de peixe feita com leite de coco, azeite de dendê e coentro, ou simplesmente puro. O Figueira Rubaiyat, churrascaria famosa abrigada sob uma figueira gigante em São Paulo, tinha um pirarucu simplesmente grelhado entre seus pratos mais conhecidos como a picanha e os bifes de chorizo. A poucos quarteirões dali, o D.O.M., de Alex Atala, que rotineiramente é mencionado nas listas dos dez melhores restaurantes do mundo, já teve no cardápio pirarucu com tapioca ou açaí, que também vem da Amazônia.

Talvez não seja surpreendente então que, devido ao seu sabor e tamanho descomunal, o pirarucu tenha quase sido extinto na década de 1990. Uma tentativa do governo de proibir sua pesca não foi suficiente para proteger a espécie. A recuperação só começou em 1999, quando o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, órgão financiado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, lançou um plano inovador que permitia às comunidades locais pescar o pirarucu, mas dentro de cotas estabelecidas e apenas durante a estação seca. O programa também acabou por incentivar a proteção dos rios e da floresta circundante, e ajudou na defesa do território contra caçadores ilegais e madeireiros. Isso criou um círculo virtuoso que permitiu que a população de pirarucu na área do projeto Mamirauá crescesse de cerca de 2.500 na década de 1990 para 160 mil hoje, ao mesmo tempo em que desenvolveu uma pequena indústria pesqueira local.

O sentimento que prevalece na reserva Mamirauá hoje é de um potencial subexplorado — de que a indústria poderia produzir para os pescadores da área mais do que os R$ 2,5 milhões, ou cerca de US$ 450 mil, que gera por ano atualmente. Produtores de outras regiões concordam que o mercado do pirarucu tem espaço para crescer. A demanda externa “supera toda a produção brasileira, definitivamente”, diz Celso Gardon Machado, piscicultor baiano, citando o interesse de compradores dos Estados Unidos, China, Europa e Arábia Saudita. “Já recebi propostas em que tive de pedir esclarecimento, porque pensei que a vírgula estava no lugar errado.” O pirarucu selvagem é especialmente requisitado. Mas os coletivos de pesca em toda a Amazônia enfrentam numerosos gargalos, provocados por um sistema de transporte fluvial notoriamente não confiável e caro, pela falta de equipamento de refrigeração adequado e pelos altos custos da segurança para se proteger de mineradores e madeireiros ilegais e outros perigos que destroem o habitat dos peixes. Um estudo de mercado de 112 páginas sobre o pirarucu publicado em 2016 pelo Sebrae, mostrou que o peixe estava “atraindo a atenção de vários investidores internacionais que veem seu alto potencial”. Mas cinco anos depois, isso continua sendo, em grande medida, um sonho.

Essa mistura de promessa e frustração torna o pirarucu um símbolo dos esforços atuais de desenvolvimento sustentável na Amazônia. O conceito é bastante claro: a riqueza natural da maior floresta tropical do mundo pode representar uma bonança econômica para os 35 milhões de cidadãos da bacia amazônica, gerando milhões de empregos verdes dentro e fora da região, se explorada de forma sustentável e inteligente. Em uma era em que os consumidores globais estão dispostos a pagar um prêmio por produtos ecologicamente sustentáveis e que os investimentos em negócios que se guiam por metas ambientais e de sustentabilidade estão em voga entre as grandes multinacionais e firmas financeiras, este poderia ser o momento ideal para a decolagem da Amazônia.

Algumas indústrias, como o cacau, o açaí e os tratamentos à base de plantas para doenças como o glaucoma, já colhem frutos do sucesso. Mas a maioria está em um estágio embrionário. O Projeto Amazônia 2030, uma iniciativa voltada para o desenvolvimento de uma estratégia para o desenvolvimento sustentável da Amazônia brasileira, compilou uma cesta de 64 produtos agrícolas e naturais com um valor total de US$ 177 bilhões no mercado global — e descobriu que a Amazônia brasileira representava apenas 0,17% de participação desse mercado. Outros países com território amazônico, incluindo Bolívia, Peru e Colômbia, enfrentam desafios semelhantes. As barreiras incluem logística, escassez de capital e, quase sempre, a política. No Brasil, que responde por cerca de dois terços do território total da Amazônia, a insistência do presidente Jair Bolsonaro de defender o desmatamento como uma estratégia de crescimento econômico colocou o Brasil próximo de obter status de pária entre os mesmos consumidores globais que os produtores sustentáveis ​​precisam conquistar. E embora o governo de Bolsonaro, em particular o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, tenha tentado abraçar pelo menos a ideia de desenvolvimento sustentável em negociações recentes sobre o clima com o governo Biden e outros, isso na prática levou muitos a temer que todo esse discurso seja apenas uma cortina de fumaça, com o objetivo de distrair  a opinião pública enquanto madeireiros ilegais, garimpeiros e grileiros continuam a incendiar a floresta.

No último ano, o setor privado brasileiro, incluindo alguns líderes do agronegócio, defendeu energicamente esforços de desenvolvimento sustentável — em parte porque vê seu potencial econômico e em parte porque teme boicotes a seus produtos por consumidores americanos e europeus. Mas para que o desenvolvimento sustentável na Amazônia seja mais do que uma campanha de marketing, ou apenas um projeto alternativo para alguns investidores verdes e ONGs, há vários desafios que ainda precisam ser superados.

Conservar a floresta é fundamental

O argumento ambiental e moral por trás dos esforços de crescimento sustentável é claro. A Amazônia tem sido um tesouro global há mais de 30 milhões de anos, demonstrando uma resiliência incrível mesmo durante as eras glaciais e outras oscilações do clima. A presença humana ali é recente em comparação, remontando a cerca de 15 mil anos. O desmatamento se converteu em um grande problema apenas na última metade do século passado, desde que a ditadura militar brasileira, de 1964 a 1985, começou a construir rodovias e outras obras de infraestrutura para estimular o desenvolvimento na região. O regime militar fez isso não apenas por razões econômicas, mas também para evitar a ocupação da região por estrangeiros, refletindo um medo profundo de interferência externa na Amazônia que tem se mantido no centro da doutrina militar brasileira por mais de um século. Integrar para não entregar era o lema da época.

Os efeitos desastrosos dessa estratégia sobre o meio ambiente são agora bem conhecidos, com a Amazônia brasileira tendo perdido cerca de 20% de sua área original para incêndios e escavadeiras desde os anos de 1960. Isso liberou grandes quantidades de carbono na atmosfera e também ameaçou a integridade da própria floresta, que muitos cientistas dizem estar perto de um ponto crítico que pode fazer com que ela se transforme em uma savana, a menos que o desmatamento seja interrompido nos próximos anos. Sem uma floresta amazônica em pé, o mundo nunca alcançará as metas do acordo de Paris; os danos aos padrões climáticos (incluindo as chuvas que sustentam a agricultura e as redes hidrelétricas em toda a América do Sul) e a biodiversidade já estão sendo sentidos e podem piorar ainda mais.

Mas a suposta compensação por toda essa destruição — o crescimento econômico — também não se materializou. Hoje, a região amazônica responde por apenas 8% da economia brasileira, exatamente a mesma proporção de 1970. Enquanto isso, o desemprego entre os jovens adultos na Amazônia é 13 pontos percentuais superior à média nacional brasileira e atinge principalmente as comunidades negras e pardas, que representam 80% da população da região. Bolsonaro, um capitão aposentado do Exército que ainda se apega a muitas das antigas filosofias da ex-ditadura, argumenta em seus discursos que mais desmatamento é necessário para reduzir a pobreza — “para que os índios possam ter médico, dentista, televisão, Internet”. Mas isso está claramente em desacordo com a experiência dos últimos 50 anos, em que os frutos do desmatamento foram colhidos apenas por uns poucos grupos seletos.

Ao mesmo tempo, proibir todo o desenvolvimento na Amazônia também não funcionou. As causas do desmatamento são complexas, com organizações criminosas, legislação e alianças políticas em Brasília e os preços globais das commodities, todos desempenhando um papel. Mas os esforços para criar empregos verdes e incentivos para as comunidades locais (e políticos distantes) manterem a floresta intacta, ajudaram a inibir o desmatamento em várias áreas além do projeto Mamirauá. Também é verdade que, para fins produtivos, o Brasil já desmatou todas as terras que poderia precisar. Dos 80 milhões de hectares desmatados desde a década de 1960, cerca de 60% foram destinados à pecuária de baixa produtividade, enquanto grande parte (30%) está degradada ou abandonada. Com um uso melhor da terra existente, há muito espaço para crescimento; há provas de que novas técnicas já aumentaram a produtividade do gado em mais de 400%, para citar apenas um exemplo.

Lidando com um difícil ambiente de negócios

No entanto, o simples cálculo econômico de muitas indústrias sustentáveis ​​continua sendo, indubitavelmente, um desafio. Muitos produtos da Amazônia provavelmente sempre exigirão um preço mais alto, dadas as despesas impostas pela logística difícil e pela enorme distância. Ana Claudia Torres, do Instituto Mamirauá, que ajudou a criar o programa de resgate do pirarucu na década de 1990, diz que o peixe tem apelo claro como “produto premium … um animal silvestre que vem com todo o apelo da conservação e em nome da Amazônia. ” Alexandra Bentes, pesquisadora da área de aquicultura da Embrapa, afirma que pesquisas com consumidores mostram “grande aceitação” do pirarucu no mercado externo. Outros veem potencial para a pele do pirarucu, colágeno de suas escamas e até enzimas digestivas e sabonetes extraídos de suas entranhas que podem exceder a demanda pela carne do peixe. Mas tudo isso continua sendo um sonho — em 2020, o Brasil exportou apenas quatro toneladas de pirarucu, cerca de 0,07% do total de suas exportações pesqueiras naquele ano.

Empresários e líderes locais apontam várias etapas que podem ajudar a tornar o pirarucu e outros produtos amazônicos mais competitivos e escalonáveis. Mais pesquisas e acesso a capital ajudarão a manter os padrões de qualidade, à medida que os produtores tentam atender à demanda enquanto criam um peixe que pode engordar de sete a nove quilos em um único ano. “Quando você vai ao mercado com esse tipo de escala e volume, tem que ter controle total sobre a cadeia de abastecimento”, diz Carlindo Maranhão, piscicultor de Rondônia. Na pesca e em outras indústrias, mais programas de treinamento especializado para os trabalhadores ajudariam a criar um ambiente no qual os insumos não fossem imediatamente exportados em sua forma bruta para São Paulo ou outras cidades distantes, como tende a acontecer hoje. A produção de mais valor agregado poderia ocorrer na própria Amazônia, especialmente nas cidades, onde residem dois terços da população da região. Outra ideia seria conectar empreendedores em estágio inicial da Amazônia com empreendedores mais experientes no Vale do Silício e em outras partes do mundo, para que possam ganhar visibilidade e aprender mais sobre o que é necessário para competir no cenário global.

Mas o passo mais urgente é claro: para o Brasil começar a reabilitar sua imagem entre os consumidores globais, antes ainda de se tornar uma “superpotência verde”, é preciso primeiro levar a sério a conservação da Amazônia. O desmatamento tem que cair a zero, e já, ou o círculo virtuoso como o que ajudou a salvar o pirarucu nunca vai realizar seu potencial — nesta e em outras indústrias. Adevaldo Dias, da Associação dos Produtores Rurais de Carauari, que ajuda a organizar feiras de alimentos com foco na Amazônia e promove o pirarucu para restaurantes de luxo em todo o Brasil, diz que o modelo claramente funciona nas condições certas. “Se as comunidades receberem uma compensação justa e decente pelo pirarucu produzido de forma sustentável que estão trazendo para o mercado, maior será sua motivação para proteger a área”, diz ele. “E as pessoas vão entender que estão contribuindo para um mundo melhor.”

(Reportagem adicional de Edmund Ruge)

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Tags: Brazil, Environmentalism in Latin America, Sustainable development, The Amazon Issue
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