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Povos Indígenas do Alto Xingu estão em luto prolongado

Obrigados pela pandemia a cancelar a tradicional cerimônia do Kuarup, povos pedem para não serem esquecidos.
Brazilian Awati Indians arrive to take part in the Kuarup ceremony in 2005.ANTONIO SCORZA/AFP via Getty Images
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ALTO XINGU, Brasil – Este ano não teremos o Kuarup, o ritual mais importante e tradicional do Alto do Xingu, a primeira terra indígena demarcada no Brasil. Durante a cerimônia nos despedimos dos mortos com danças, lutas, corpos pintados e convidados de todo território e de fora dele. Oito etnias se reúnem numa grande festa para dar adeus aos que se foram.

Pela primeira vez na história vamos permanecer de luto até que o ritual possa ser realizado na próxima temporada de seca na região, em Agosto de 2021. Mas até lá tememos chorar ainda mais por muitos que irão sucumbir a mais nova ameaça.

Muito antes do coronavírus chegar aos nossos territórios e causar a primeira morte de um bebê de 45 dias, algo muito perigoso já ameaçava os povos indígenas: o presidente Jair Bolsonaro.  Ele tem deixado claro com seus ataques que é contra as causas indígenas e ambientais e tememos que o presidente se aproveite dessa crise de saúde para deixar o vírus se espalhar entre nós e matar parte da população nativa do Brasil, como aconteceu com a epidemia de sarampo de 1954, ainda muito viva na nossa memória.

Nós, do povo Kuikuro do Alto do Xingu, em Mato Grosso, estamos com muito medo. Fomos abandonados à própria sorte pelo governo para lidar com essa doença e proteger nossos povos dessa pandemia.

The Kuikuro decided to build a quarantine house to isolate people with symptoms of COVID-19.

Aqui na aldeia Ipatse temos apenas uma pequena unidade de saúde e um enfermeiro treinado para atender até 700 pessoas. O hospital mais próximo que conta com uma unidade de terapia intensiva fica em Cuiabá a mais de 600 quilômetros da nossa aldeia.

A higiene também é mais difícil. Nos banhamos e pescamos no rio Xingu, mas há anos não bebemos da água contaminada por agrotóxicos das lavouras de soja ao redor dos nossos territórios. Para evitar o veneno, temos um poço artesiano e caixas d’água na aldeia para cozinhar e fazer limpeza básica. Sabemos que por conta da falta de infra-estrutura e da distância da rede hospitalar a nossa chance de morrer de Covid-19 é o dobro da do resto dos brasileiros: 12,6%

A nossa cultura também é coletiva. Diferentemente dos brancos que pensam individualmente, nós fazemos tudo juntos- vivemos em grandes casas comunitárias, cozinhamos, comemos, trabalhamos e celebramos nossos rituais com toda aldeia.  

O que nos resta fazer agora é nos isolarmos juntos. 

Quando recebemos as primeiras notícias pela TV e pela Internet de que a doença estava se aproximando do Xingu, decidimos cortar todo contato físico com as cidades mais próximas e com outras aldeias e as viagens e visitas agora só são permitidas em situações extremas.  Uma casa de isolamento, construída de forma tradicional com material da floresta, vai abrigar quem apresentar qualquer sintoma da doença.

Mas isso só foi possível com as nossas parcerias com a sociedade civil, como a ONG britânica People’s Palace Projects, com a qual há seis anos fazemos intercâmbios culturais entre indígenas e artistas estrangeiros. Eles, com ajuda de uma companhia de teatro de Londres, a Complicité, fizeram uma campanha para arrecadar fundos para a nossa associação AIKAX. Com o dinheiro nós pudemos comprar cestas básicas, produtos de higiene e limpeza, EPIs e combustível para os nossos barcos de pesca e para os geradores da aldeia. Assim não precisamos frequentar o comércio da cidade.

Com a americana PennyWise Foundation e o Museu Paraense Emílio Goeldi, um centro de estudos científicos e socioculturais da Amazônia, e o Museu Nacional da UFRJ, lançamos o primeiro aplicativo indígena de rastreamento e monitoramento da nossa população. Três moradores de nossa aldeia foram treinados para usar essa ferramenta simples instalada em telefones celulares.  Assim podemos controlar quem entra e quem sai da aldeia e isolar por 14 dias na casa de quarentena quem não seguiu as recomendações de nossas lideranças. 

Se o piloto der certo o aplicativo poderá ser expandido para todo Alto do Xingu, para que agentes de saúde de fora das aldeias consigam monitorar remotamente os sinais vitais de pacientes infectados aqui dentro. Com esse apoio internacional estamos comprando equipamento hospitalar, tanques de oxigênio, máscaras, álcool gel e sabão. Nada veio dos governos federal, estadual ou municipal ou de qualquer grande corporação e empresa privada.

Para salvar vidas, contamos também com a apoio de arqueólogos, antropólogos, linguistas, indigenistas, médicos especializados em saúde xinguana. Com eles entendemos os riscos que corremos e aprendermos mais sobre a prevenção.

Meu trabalho como cineasta tem ajudado na divulgação de campanhas educativas na língua Kuikuro.

Takumã Kuikuro

Meu trabalho como cineasta tem ajudado na divulgação de campanhas educativas na língua Kuikuro com material audio-visual dentro da aldeia com engajamento das lideranças e do nosso cacique. Mas ainda temos dificuldade em aceitar as diferenças culturais que estão sendo impostas por essa nova doença. 

Enquanto não houver cura ou vacina contra a Covid-19 o cacique Afukaká e o presidente da Associação Kuikuro, Yanamã, recomendam que os infectados não sejam encaminhados aos hospitais e fiquem na aldeia em isolamento para serem tratados com os equipamentos que vão adquirir e com a medicina indígena dos pajés da comunidade.

Nós não queremos ser mortos como morrem os brancos. 

Aqui no Alto do Xingu, das 16 etnias, 9 pintam e enfeitam os corpos para que a pessoa chegue bonita ao mundo dos mortos. Mas com os corpos infectados pela Covid-19 teremos de abandonar mais um rito de passagem tradicional. E sem a despedida final do Kuarup vivemos agora um luto prolongado com o temor de um possível extermínio da nossa história e da nossa memória que pode estar por vir. 

Só pedimos para não sermos esquecidos.

Takumã Kuikuro, cineasta e fellow da Queen Mary University of London



Tags: Brasil, coronavirus, covid-19, Kuarup, Xingu
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