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Entrevista: Chanceler Mauro Vieira define a “doutrina Lula” para as relações exteriores

O ministro conversa com o editor-chefe da Americas Quarterly sobre a relação com a China, os EUA, a necessidade de reformas em organismos multilaterais e outros temas.
O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, durante discurso em Assunção, no Paraguai, em março de 2023.
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Este artigo faz parte do especial “O Que Lula Representa Para a América Latina”, que será publicado na Americas Quarterly em abril. (Read in English)

BRASÍLIA — “O Brasil está de volta”, declarou o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em uma conferência internacional logo após sua vitória nas eleições de 2022. Mas o que exatamente isso representa para a relação do país com o restante da América Latina? Como o Brasil vai lidar com a crescente competição entre a China e os Estados Unidos, e com temas cruciais, como a guerra na Ucrânia, a Venezuela e a Nicarágua?

Algumas respostas serão familiares para aqueles que acompanharam os anos de Lula na presidência, entre 2003 e 2010. Mas muita coisa mudou desde então, no Brasil e no resto do mundo, o que significa que haverá mudanças na política externa, diz o chanceler Mauro Vieira, em entrevista à AQ.

“Há 20 anos atrás, o crescimento da China era visível, mas agora o país é uma superpotência, sem dúvida nenhuma. Em menos de 20 anos, o Brasil — e não só o Brasil, como todos os países da América Latina — passaram a ter na China o principal parceiro comercial. Isso mudou muito, e também mudou um pouco a geopolítica.”

Esta entrevista foi feita por videoconferência, no dia 13 de março de 2023. Ela foi levemente editada para contexto e clareza..

Brian Winter: Esta talvez seja uma pergunta muito norte-americana, mas aqui se fala sempre na doutrina dos presidentes: a doutrina Biden, a doutrina Bush, por exemplo. Existe uma doutrina Lula?

Minister Mauro Vieira: Eu diria que a doutrina Lula é uma doutrina de recuperação da imagem do Brasil e das relações não só prioritariamente com os nossos vizinhos latino-americanos, mas também da presença do Brasil no mundo, em todos os palcos mundiais, os mais diferentes possíveis, sejam eles bilaterais ou multilaterais. Nos últimos quatro anos, o Brasil deixou de seguir a sua tradição diplomática, de ser um país aberto, de falar com todos os interlocutores, independente de posição ideológica, e de manter contatos e negociar e conversar. Eu acho que se há uma doutrina, é essa. O presidente Lula me deu instruções específicas. Ele fez um discurso muito poderoso, muito importante, em Sharm El-Sheikh, na COP, onde ele disse que o Brasil estava de volta. Depois de tomar posse e de me convidar para esse cargo, ele disse repetidamente para mim que o importante era isso, que se soubesse que o Brasil estava de volta à sua tradição diplomática e que eu reconstruísse todas as pontes e todos os canais de comunicação que tinham sido destruídos com outros países.

BW: O mundo mudou muito nesses 20 anos desde o primeiro governo do Lula. Quais são as diferenças mais importantes entre a política exterior dele naquela época e agora?

MV: Olha, a política exterior dele foi chamada, na ocasião, de ativa e altiva. Foi uma frase criada pelo então ministro do Exterior, Celso Amorim, de quem eu fui chefe de gabinete, inclusive, e que representou muito bem essa face que ele imprimiu à política externa nos oito anos do governo Lula.

É evidente que o mundo mudou muito, em todos os sentidos, inclusive pelos meios de comunicação, pela rapidez em que todos os fatos são conhecidos imediatamente, e também pela geopolítica. Há 20 anos atrás, o crescimento da China era visível, mas agora é uma superpotência, sem dúvida nenhuma. Em menos de 20 anos, o Brasil — e não só o Brasil, como a maioria dos países da América Latina — passaram a ter na China o principal parceiro comercial. É o caso do Brasil. Então, isso mudou muito e também mudou um pouco a geopolítica.

Agora temos uma guerra em curso na Europa. E eu acho que houve mudanças também na governança global, porque os organismos multilaterais, sejam políticos ou sejam comerciais, estão muito enfraquecidos, perderam a capacidade de atuar do ponto de vista comercial — o organismo comercial, a OMC, está paralisada, perdeu a relevância. E, por outro lado, a situação das Nações Unidas também é preocupante porque nós estamos diante de uma paralisia do órgão principal de manutenção da paz e segurança, que é o Conselho de Segurança. O Conselho de Segurança, com a sua composição de 1945, não reflete mais a realidade atual. E estamos diante de uma grande crise em que os mecanismos, os métodos de trabalho e a composição não permitem que as Nações Unidas tenham um papel fundamental como deveria ter, como é a posição do Brasil defender, e como foi no passado.

Hoje há uma certa paralisia, em detrimento da paz mundial, em detrimento da melhor governança. Então, eu acho que essas são as grandes mudanças. E é nisso também que o Brasil, em que a política externa do presidente Lula, quer ser atuante novamente, em promover uma discussão sobre a governança global.

BW: O mundo mudou bastante. O Brasil também mudou, especialmente nos últimos quatro anos, como o senhor disse. Como vê a recuperação da democracia brasileira após os eventos dos últimos meses, especialmente os atentados do dia 8 de janeiro? E esses eventos, esses episódios, que representaram um risco autoritário para o país parecido ao que enfrentamos aqui nos Estados Unidos, têm algum ponto de intersecção com a política exterior brasileira, ou são temas separados?

MV: Olha a questão da democracia no Brasil… Eu acho que desde 1964, em que houve uma ruptura da ordem democrática, que demorou 21 anos… Eu acho que com a recuperação da democracia no Brasil e com a promulgação da Constituição [1988], nós passamos a ter uma democracia jovem naquele momento, mas sólida e com instrumentos sólidos, ditados pela Constituição.

Os acontecimentos de 8 de janeiro foram resultado da confrontação que houve na sociedade brasileira nos últimos anos, desde 2016, com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e depois, em 2018, com a eleição do último governo, que representou uma guinada enorme à direita, mudando o comportamento brasileiro em termos de política externa, mas também em termos de política doméstica, e que estimulou um grupo que se sentiu privilegiado durante este governo, e estimulou esse grupo, inclusive, a financiar os movimentos do dia 8 de janeiro. Eu estava em Brasília e foi um evento, um acontecimento, inesperado e surpreendente. Ver aquela quantidade de pessoas, cerca de 4000 pessoas pelas ruas, chegando à praça central de Brasília, onde estão representados os três poderes do Estado, e destruindo as instalações físicas… É uma coisa inacreditável, que contou não só com o estímulo ideológico e político, mas também com apoio financeiro importante de vários setores.

Isso é uma manifestação de uma parte da sociedade brasileira que não é democrática e não tem apreço pelos valores democráticos. Porque não há dúvida que houve uma eleição, que o presidente Lula venceu.

Então, agora é uma questão de investigar e tirar a limpo o que aconteceu, quem inspirou, quem cometeu esses atos de grande ilegalidade e que poderiam ter comprometido realmente a democracia brasileira. Mas eu acho que a sociedade e as autoridades constituídas reagiram rapidamente e tudo foi controlado. No próprio domingo, já no início da noite, já estava tudo sob controle e havia muitos detidos.

BW: E isso tem algum impacto na política exterior? Por exemplo, o risco parecido que enfrentaram tanto o Brasil quanto os Estados Unidos chegou a ser uma parte fundamental da visita que o Presidente Lula fez ao Presidente Biden em Washington [dia 10 de fevereiro]?

MV: São questões internas, sem dúvida nenhuma, mas com repercussão também na política externa. Eu, naquela noite, recebi uma série, talvez 15 telefonemas de ministros do exterior de outros países, de países mais próximos, que manifestaram solidariedade e apoio ao Brasil e às instituições democráticas brasileiras. Os presidentes Biden e Lula conversaram sobre o tema, com comentários sobre os acontecimentos num país e no outro. Foi motivo também de comentário a necessidade que se tem de fortalecer as democracias do mundo inteiro.

Eu acho que países grandes como Estados Unidos, como o Brasil e outros, podem ter um papel importante na divulgação dos valores democráticos e na discussão entorno da importância de se manter a democracia e as conquistas da democracia para cada um dos povos. No caso do Brasil, foi graças à democracia implantada, recuperada, desde a promulgação da Constituição de 1988 que houve governos progressistas, como o do presidente Lula, que criaram condições de crescimento econômico e que beneficiaram a população, retirando milhões de pessoas da pobreza, criando habitação para as pessoas necessitadas, sistemas de saúde e tudo mais.

Então, isso só existe na democracia. Daí a importância de se defender a democracia, e toda a iniciativa de se defender a democracia internacionalmente é muito válida, porque dessa forma podemos atingir o desenvolvimento e o crescimento dos países.

BW: O relativo silêncio do governo Lula sobre a questão das ditaduras na América Latina, como Nicarágua e Venezuela, contradiz de alguma maneira esse apreço pela democracia a nível nacional, regional e global?
 
MV: Não, porque inclusive não há silêncio. No primeiro momento em que se registrou algum movimento no cenário internacional dentro de um organismo multilateral, foi em Genebra, no Conselho de Direitos Humanos, sobre a questão da Nicarágua. O Brasil não apoiou, ao contrário. Nós só quisemos fazer uma declaração à parte, independente de um grupo de nações, porque queríamos deixar clara a nossa posição de que precisa haver mudanças. Precisa haver correções. E o Brasil quis esgotar — primeiro, antes de esgotar, quis apelar para os mecanismos multilaterais que existem, e aí discutir e esgotar os recursos antes de qualquer outra atitude mais forte, como, por exemplo, a adoção de sanções, elemento sugerido ao longo dos debates. Esse foi o elemento que nos fez emitir uma declaração em separado, com referência à necessidade de diálogo com o governo e com os atores relevantes da sociedade nicaraguense. Sanções unilaterais, como muitos países adotam, são ilegais para o Brasil. Nós só podemos, inclusive pela nossa legislação, aplicar as sanções que forem aprovadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Então, nós não poderíamos, em princípio, apoiar uma declaração que não fizesse referência ao diálogo como primeiro passo. E como foi a primeira oportunidade num foro multilateral, que é um instrumento que tem os mecanismos para se corrigir esses pontos, foi a primeira vez que ocorreu essa discussão desde que o presidente Lula tomou posse, há dois meses e meio atrás, nós quisemos deixar muito clara a nossa posição.

BW: Existe um papel para o Brasil e para o Presidente Lula nas eventuais negociações sobre a paz entre a Ucrânia e a Rússia?

MV:  Olha, o presidente Lula disse inúmeras vezes e fala-se muito da proposta de Lula… Ele não fez uma proposta concreta, com pontos a seguir para se chegar à paz. O que ele disse é que tem ouvido muito falar sobre guerra, sobre a colocação à disposição de um país ou de outro de grande quantidade de recursos para compra de armamento, em destruição e morte, e não ouve falar sobre paz. O que ele quer, e o que ele fez, foi um chamamento para que se possa começar a discutir de alguma forma e conversar sobre a paz.

É isso que é importante, diante de todas as vítimas humanas, diante de toda a destruição provocada no país que está sendo atacado. Ele condenou e a invasão da Ucrânia, e depois também os efeitos mundiais de inflação, de ameaça à segurança alimentar, de risco de essa guerra se prolongar por muitos anos, ou então até de se perder um pouco o controle, num mundo em que as armas são cada vez mais destruidoras e mais letais. Então, foi com essa preocupação toda que ele fez, e continuará fazendo em todas as ocasiões que se apresentarem, um chamamento a que se possa sentar e conversar, porque nós estamos absolutamente convencidos, ele está convencido, de que não está no interesse de nenhuma das partes continuar com esta guerra tão triste e deplorável, sem pelo menos tentar encontrar uma solução negociada.

O Brasil é um país pacifista… É a nossa genética diplomática. É isso que o presidente quer dizer ao mundo.

BW: Muitos países estão adotando, especialmente no Sul global, a ideia ou a doutrina, do não alinhamento ativo como estratégia para lidar com essa concorrência crescente entre os Estados Unidos e a China. O embaixador Amorim, que o senhor já mencionou, inclusive escreveu um capítulo para um livro recente sobre essa ideia. Esse conceito basicamente resume a posição brasileira sobre essa questão?

MV: Sim, nós não temos um alinhamento automático a nenhum dos dois lados. Nós temos, ao contrário, excelentes relações com os Estados Unidos. Aliás, no ano que vem vamos comemorar os 200 anos de relações diplomáticas com embaixadores residentes, e também temos importantes relações com a China. O que nos guia é o interesse nacional dentro de um marco do multilateralismo, do direito internacional. Alinhamentos automáticos não trazem resultados positivos e resultados que sejam benéficos ao interesse nacional. Sempre pode haver prejuízos quando é um alinhamento automático e injustificável — aliás, como foi nos últimos quatro anos.

Brazilian Foreign Minister Mauro Vieira is focused on regional integration and met with Uruguay's foreign minister in March.
O chanceler Mauro Vieira com o ministro das Relações Exteriores do Uruguai, Francisco Bustillo, no Palácio do Itamaraty, em Brasília, no dia 7 de março de 2023.

BW: Fala-se muito de integração latino-americana neste momento. Há  uma sincronia ideológica entre muitos governos da região, mas algumas pessoas têm certo ceticismo sobre se essas ideias vão se traduzir em coisas práticas, além de reuniões e grupos como CELAC e Unasul. Terá, tem uma agenda concreta, prática, quando se fala da integração regional e quais são as oportunidades mais importantes?

MV: Não há dúvidas de que a integração é um objetivo sério e para valer. Inclusive está na Constituição brasileira a integração latino-americana. E há exemplos concretos, muito concretos. O presidente viajou e visitou Argentina e Uruguai. Eu acabei de vir do Paraguai, ou seja, os três sócios originais do Mercosul, junto com o Brasil, estão cobertos. O presidente ainda terá em breve um encontro com o presidente do Paraguai, cobrindo então pessoalmente os três países. Nesses três casos, foram acertadas medidas e projetos muito específicos de integração física, por exemplo, que é fundamental. Em breve vamos poder anunciar todos, tanto com a Argentina como com Uruguai e Paraguai.

E são projetos que vão beneficiar a infraestrutura rodoviária e ferroviária e navegação fluvial desses países, o que tem um impacto imediato também no comércio. Barateia os custos, dá mais segurança. Não é só uma retórica. Não são projetos que estão começando. Nós finalizamos, demos os toques finais nesses projetos, que já vão ser implementados. Além disso, há muitos outros que poderão vir.

A CELAC é um local, é um palco para discussões que podem levar a coisas concretas, muito concretas. Mas é, vamos dizer, um foro de concertação política. Além disso, o presidente Lula quer rever e atualizar a Unasul, que, diferente da CELAC, era um organismo com, vamos dizer,  força, com iniciativas concretas de integração em muitas áreas e que infelizmente foi abandonada, mas que nós queremos adaptar e atualizar, porque também não é mais o mesmo mundo. Agora, só para você ter uma ideia, a integração, do ponto de vista de Mercosul, representa um crescimento exponencial do comércio entre os países do Mercosul. Hoje em dia nós temos um volume importante de comércio intra-Mercosul e que sem o Mercosul, sem um projeto de integração, não haveria.

BW: Eu mencionei essa sincronia ideológica. A maioria dos governos, especialmente na América do Sul, são de esquerda, com toda a diferença que há entre eles. Mas é possível que vejamos uma mudança de governo na Argentina neste ano, por exemplo. Essa sincronização ideológica é importante para as relações latino-americanas ou a importância dela é superestimada?

MV: Olha, o importante são os interesses nacionais, e sobretudo, as decisões de cada país de integração, de contato com os seus vizinhos. Nós não podemos deixar de forma alguma de conversar com nenhum país, ainda mais os países com que compartilhamos fronteiras. Você sabe muito bem, como um brasilianista, que temos dez fronteiras com países da região. Nós não podemos deixar de conversar porque o governo tem tal ou qual orientação ideológica. Isso é uma coisa que não existirá durante o governo do presidente Lula e que não existiu na boa tradição diplomática brasileira.

Nós sempre conversaremos com todos, independentemente da orientação ideológica. Porque o interesse nacional está acima de qualquer diferença de posição política. Então, é isso que eu posso dizer, é isso que é relevante, é isso que conta.

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Reading Time: 10 minutesWinter is the editor-in-chief of Americas Quarterly and a seasoned analyst of Latin American politics, with more than 20 years following the region’s ups and downs.

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Tags: América Latina, Brazil, Brazil's foreign policy, China, Lula, Mauro Vieira, Política Externa
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