Este artigo é parte da edição especial da AQ sobre fake news | Read in English | Leer en español
Em 28 de outubro de 2018, poucas horas depois de Jair Bolsonaro ser eleito presidente do Brasil, Cristina Tardáguila recebeu um telefonema urgente de seu advogado. Ele havia reservado para ela um assento em um voo para a Espanha, que partiria poucos dias depois. E disse, “O Brasil não é mais seguro para você”, recorda ela.
Tardáguila é fundadora da Lupa, a primeira e mais importante agência de checagem de fatos do Brasil. Com sede no Rio de Janeiro desde 2015, a agência foi acolhida inicialmente de forma calorosa e quase unânime por tentar ajudar os brasileiros a classificar uma massa crescente de conteúdo duvidoso em plataformas como WhatsApp, YouTube e Facebook. Mas em 2018, ano de uma eleição presidencial historicamente amarga entre o conservador Jair Bolsonaro e o esquerdista Fernando Haddad, o tom mudou.
O volume de notícias falsas, também conhecidas como fake news, pela expressão em inglês, quadruplicou naquele ano. Tardáguila e seus colegas de trabalho da Lupa chegaram a receber 56 mil ameaças por mês. Elas vinham de todo o espectro ideológico, mas a maioria era de apoiadores de Bolsonaro. Cerca de 20% dos artigos pareciam ser gerados por programas, mais conhecidos como bots.
“Escória suja”, dizia uma mensagem direta no Twitter. “Quando chegar a hora, vamos procurá-los, um por um.” Um cartoon que viralizou nas redes sociais exibia caricaturas dela e de outras duas proeminentes checadoras de fatos seminuas e com coleira de cachorro. George Soros aparecia segurando a coleira e balançando um maço de dólares sobre elas.
Outros verificadores de fatos também foram visados. Truco, outra agência, fechou em meio a uma enxurrada de ameaças sérias. Algumas alertavam sobre um ataque químico com ácido.
No início, Tardáguila ignorou o conselho de seu advogado. Ela não queria forçar sua família a deixar o país ou abandonar seus colegas, muitos dos quais também sofriam ameaças. Ela esperava que depois das eleições as coisas se acalmassem. Mas as ameaças nunca pararam. Ela pensou em fazer uma denúncia formal à polícia do Rio de Janeiro. Mas uma fonte do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) alertou para que não o fizesse. A polícia do Rio era tão polarizada quanto as pessoas que a perseguiam no Facebook e no Twitter, disse a fonte. Na melhor das hipóteses, eles ignorariam sua queixa. Mas também poderiam prejudicá-la, vazando informações pessoais, como seu endereço, para aqueles que desejassem causar-lhe danos. Em maio de 2019, cansada e assustada, ela finalmente deixou o Brasil.
Tardáguila é apenas uma das faces da guerra cada vez mais divisiva e perigosa de notícias falsas e desinformação no Brasil. A batalha sobre o que é verdadeiro ou falso e quem decide se e como punir os infratores está esgarçando o tecido da democracia brasileira. Notícias falsas estão corroendo seriamente a confiança da opinião pública no sistema eleitoral brasileiro no período que antecede as eleições presidenciais de 2022. Elas também estão no centro de uma crise constitucional que coloca em lados opostos Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal. O presidente e seus seguidores chegaram a ameaçar não acatar decisões do Supremo ou até fechá-lo para supostamente proteger a sua liberdade de expressão. A questão de como lidar com a maré de desinformação que assola o país sem ameaçar as liberdades civis, representa um dilema extraordinariamente difícil para os legisladores, empresas de tecnologia, sistema judiciário e outros, e não há soluções fáceis à vista.
O Brasil certamente não é o único país do mundo lidando com problemas de desinformação. A América Latina registra algumas das taxas de uso de mídia social mais altas do mundo e conta com os níveis mais baixos de confiança no governo e em outras instituições, o que torna muitos países da região num terreno especialmente fértil para as fake news. Na Colômbia no início deste ano, relatórios falsos sobre policiais estuprando meninas foram postados no Twitter, em uma aparente tentativa de motivar o sentimento de oposição às forças policiais entre os milhões de manifestantes anti-governo que tomaram as ruas. No Peru, uma pesquisa de origem duvidosa indicando que Pedro Castillo estava 30 pontos à frente de Keiko Fujimori foi amplamente compartilhada em várias plataformas. A disseminação maciça de notícias falsas relacionadas à pandemia, como supostas curas milagrosas como a hidroxicloroquina, pode ser uma das razões pelas quais a América Latina é responsável por cerca de 25% das mortes confirmadas de COVID-19 em todo o mundo, apesar de ter apenas 8% da população global, (além de outros fatores como desigualdade econômica e sistemas de saúde pública sucateados).
Mas mesmo para os padrões regionais, o Brasil parece ser um caso especial. Como repórter colombiana, pensei que tínhamos um grande problema com a desinformação em meu país; mas constantemente me surpreendi nas minhas investigações para esse artigo com a quantidade de notícias falsas espalhadas até mesmo por autoridades do governo, e pelo acalorado debate dos brasileiros sobre o que é verdadeiro ou falso. Está claro que, como os Estados Unidos foram o principal campo de batalha no debate global sobre desinformação durante as eleições presidenciais de 2020, o Brasil poderia ser o epicentro para uma batalha semelhante num momento em que Bolsonaro busca uma reeleição no próximo ano. De fato, personagens de peso do mundo todo, do ícone conservador americano Steve Bannon a executivos de empresas de tecnologia do Vale do Silício, estão interessados no debate sobre desinformação no Brasil. O que ocorrer aqui nos próximos 12 meses — se os brasileiros serão de alguma forma capazes de desarmar o que parece ser uma bomba-relógio — terá implicações em todo o mundo.
A batalha online
As notícias falsas tendem a prosperar mais em sociedades polarizadas, diz Michael Beng Petersen, professor da Universidade Aarhus da Dinamarca e renomado especialista em desinformação. Não é de surpreender, então, que o Brasil tenha um problema tão sério.
Muitos analistas atribuem o início do atual período de polarização do Brasil ao governo esquerdista do Partido dos Trabalhadores (PT), entre 2003 e 2016. A era foi definida inicialmente pela prosperidade generalizada e uma grande expansão da classe média, mas terminou em escândalo, aumento do crime e a pior recessão da história do Brasil. O impeachment da petista Dilma Rousseff em 2016 dividiu o país. Ao mesmo tempo, a investigação anticorrupção da opera ção Lava Jato, iniciada em meados da década de 2010, abalou todos os partidos políticos e provocou uma reação em cadeia contra toda a estrutura de poder do país, diz Sergio Lutdke, do Projeto Comprova, patrocinado pelo Google que reúne um conglomerado de jornalistas com foco na investigação da desinformação.
Brasileiros a princípio expressaram sua frustração por meio de uma série de protestos que levou 1 milhão de pessoas às ruas em 2013. Mas o principal campo de batalha mudou rapidamente para a Internet, diz Ludtke. Os brasileiros já estavam entre os primeiros a adotar e maiores entusiastas das redes sociais, começando com o Orkut, uma plataforma de mídia social do Google, anos antes de o Facebook ou o Twitter conquistarem o mundo. O Orkut fechou em 2014, mas o Brasil tem hoje cerca de 160 milhões de usuários de redes sociais, mais do que qualquer outro país fora da Ásia, exceto os Estados Unidos. Os brasileiros também passam mais tempo nas redes sociais do que qualquer outro país, exceto as Filipinas, de acordo com um relatório da agência de marketing digital We Are Social e da Hootsuite, plataforma de gerenciamento de redes sociais.
Em meio a essa fermentação, surge Jair Bolsonaro, um personagem periférico da política brasileira antes das eleições de 2018. É impossível imaginar a ascensão de Bolsonaro sem o auxílio das redes sociais. Seus ataques agressivos contra o PT, as mulheres, pessoas LGBT e outros grupos geraram críticas generalizadas entre a mídia tradicional e os políticos brasileiros — e um número de seguidores leais online que crescia em disparada. “É como se (Bolsonaro) soubesse quais palavras dizer” para fazer o algoritmo funcionar em seu favor e aumentar o tamanho de seu público cativo, diz Thomas Traumann, um analista político. Ainda hoje, os seguidores de Bolsonaro tendem a ver a mídia social como o pilar central de seu poder e popularidade. Eles acreditam que, sem isso, o debate público seria monopolizado por jornais e emissoras tradicionais como a Globo, que sempre questionam ou se opõem à retórica de Bolsonaro. Isso ajuda a explicar por que qualquer tentativa de regulamentar as redes sociais gera uma oposição tão imediata e feroz entre muitos bolsonaristas.
O problema é que o espaço ocupado por bolsonaristas online é consistentemente bombardeado com notícias falsas e desinformação — ao ponto de não parecer acidental, dizem os especialistas. Durante a campanha de 2018, circularam memes afirmando falsamente que Haddad, candidato do PT que enfrentou Bolsonaro no segundo turno, havia distribuído, durante seu mandato de prefeito de São Paulo, milhares de mamadeiras com bicos em formato de pênis pelas creches da cidade como parte de um “kit gay” com o objetivo de tornar a homossexualidade mais aceitável entre as crianças. Outras notícias falsas durante a campanha alegaram que Haddad queria legalizar a pedofilia e permitir que o Estado decidisse a qual gênero as crianças deveriam ser designadas assim que completassem cinco anos.
Algumas evidências sugerem que a máquina de notícias falsas pró-Bolsonaro é uma operação profissional dirigida pelos aliados e seguidores do presidente. Uma investigação da Polícia Federal sobre a organização de protestos antidemocráticos realizados em 2020 apontou para a existência de um chamado “gabinete do ódio” — um grupo de jovens assessores, supostamente liderados pelos filhos politicamente ativos de Bolsonaro, dedicados a divulgar notícias falsas e ataques a jornalistas e opositores do governo. (Os filhos de Bolsonaro e outros negam veementemente a existência de um “gabinete do ódio” ou que eles tenham espalhado notícias falsas.) Durante as eleições de 2018, uma investigação da Folha de S. Paulo revelou uma indústria de agências de publicidade que vendiam pacotes de WhatsApp que permitiam a disseminação rápida de mensagens. Empresas aliadas de Bolsonaro supostamente pagaram até 2,3 milhões de dólares pelo serviço, de acordo com a Folha. A reportagem afirma que as agências de relações públicas tiveram acesso ilegal a bancos de dados de usuários do WhatsApp vendidos por várias empresas digitais.
Desde que se tornou presidente, Bolsonaro continuou a contar com as redes sociais, de forma muito mais ampla que a maioria dos líderes políticos contemporâneos. Em seu canal no Facebook, ele transmite discursos ao vivo para 10,7 milhões de seguidores todas as semanas. Ele costuma falar por mais de uma hora, reclamando das negociações costumeiras em Brasília e às vezes zombando dos convidados (em uma entrevista ao vivo, ele chamou um seguidor negro de “criador de baratas”, em referência ao seu cabelo crespo). Bolsonaro e seus seguidores também usam o Twitter e outras plataformas para fazer ataques falsos contra jornalistas, incluindo aqueles que trabalham em agências de checagem de fatos. Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, alegou falsamente que Patrícia Campos Mello, repórter que liderou a investigação da Folha sobre o suposto uso ilegal de grupos do WhatsApp, ofereceu favores sexuais a suas fontes para obter informações contundentes sobre o presidente. (Campos Mello venceu uma ação contra Bolsonaro por danos morais, e um juiz o condenou a pagar uma multa de R$20.000,00). “Minar a imprensa faz parte da campanha de desinformação (de Bolsonaro)”, diz Pablo Ortellado, filósofo e coordenador do grupo de investigação da Universidade de São Paulo sobre políticas públicas e acesso à informação. Ao chamar os jornalistas de mentirosos, ele “desarma algo que poderia provar seus erros”.
Claro que fake news vindas da esquerda também tem sido um problema – recentemente vários representantes to PT promoveram ou compartilharam um video que sugere enganosamente que a tentativa de assassinato sofrida por Bolsonaro em 2018 poderia ter sido uma encenação e os indícios acobertados depois. Mas o que mais preocupa defensores da democracia são aparentes evidências de uma operação profissional de desinformação a serviço do governo. Uma reportagem de setembro da Repórteres Sem Fronteiras contou quase meio milhão de tweets atacando a imprensa em um período de três meses no Brasil, com pelo menos 20% deles provavelmente oriundos de contas automatizadas ou “bots”. Uma pesquisa de Raquel Recuero, coordenadora do Laboratório de Mídia, Discurso e Análise de Redes Sociais da Universidade Federal de Pelotas, sugere que há uma resposta desproporcional, imediata e obviamente coordenada nas redes sociais quase todas as vezes que o presidente é atacado ou diz algo polêmico. Isso aconteceu, por exemplo, quando a Veja, a principal revista semanal do Brasil, publicou um artigo em 2018 sobre o divórcio de Bolsonaro e sua segunda mulher. Minutos depois, as redes sociais foram inundadas com falsas alegações de que a Veja recebia dinheiro do PT para mentir sobre Bolsonaro. “Se fosse orgânico, seriam várias histórias, com explicações diferentes”, saindo em diferentes momentos, diz Recuero.
Inimigos por toda parte
O fluxo implacável de desinformação provocou uma contra-reação dos tribunais, de reguladores da Internet, empresas de tecnologia e adversários políticos de Bolsonaro. Alguns esforços para controlar o problema parecem promissores. Mas outros parecem impulsionados pela política enquanto alguns contemplam curas que podem ser tão ruins ou piores do que a própria doença.
Do lado judicial, existem pelo menos quatro investigações ou inquéritos importantes envolvendo notícias falsas, alguns com competências sobrepostas. O primeiro, e talvez o mais controverso, é um inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre uma campanha desenfreada para disseminar notícias falsas e ameaças feitas por seguidores de Bolsonaro contra membros do tribunal. A investigação está sendo conduzida pelo juiz do Supremo Alexandre de Moraes, ex-promotor público e ministro da Justiça. O próprio presidente se tornou parte investigada nesse inquérito em agosto, após alegar que as eleições de 2014 e de 2018, na qual se elegeu presidente, foram marcadas por fraude (Bolsonaro afirma que deveria ter vencido no primeiro turno, mas admitiu não ter provas). Uma condenação criminal contra um presidente em exercício é altamente improvável.
A investigação contribuiu para a escalada da crise entre o Supremo e Bolsonaro, cujos partidários afirmam que a investigação é inconstitucional, argumentando que o STF não pode ser a vítima, investigador e juiz ao mesmo tempo. Mesmo assim, o caso abalou profundamente o círculo íntimo de Bolsonaro, já que a Polícia Federal vasculhou as casas e escritórios de dezenas de empresários, blogueiros e políticos aliados. Moraes também autorizou detenções, incluindo a de Roberto Jefferson, aliado ferrenho de Bolsonaro e líder do Partido Trabalhista Brasileiro, de direita. De acordo com o juiz, Jefferson fazia parte de uma quadrilha de criminosos que buscava “desestabilizar as instituições republicanas” por meio da divulgação de notícias falsas. Após a prisão de Jefferson, Bolsonaro pediu ao Senado o impeachment de Moraes. Traumann, o analista político, diz que o caso de Jefferson incomoda especialmente o presidente porque ele teme que um dia o tribunal também vá atrás de seus filhos por um suposto papel na divulgação de desinformação.
As outras investigações incluem uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News aberta no Congresso sobre redes criminosas de desinformação, que solicitou à Polícia Federal que determine se os computadores do Senado foram usados para espalhar notícias falsas no Instagram. Essa investigação também pediu às empresas de mídia social que forneçam os nomes por trás de vários perfis em redes sociais, incluindo contas que foram acessadas do escritório de Eduardo Bolsonaro no Congresso. Uma investigação separada do TSE, o órgão eleitoral, investigou as alegações de que Bolsonaro e seus apoiadores espalharam desinformação sobre as eleições do próximo ano, incluindo alegações não comprovadas de que as urnas eletrônicas do Brasil são suscetíveis a fraude. A quarta investigação, criada pelo Senado, está explorando a desinformação e outros aspectos da resposta ineficaz do governo de Bolsonaro à pandemia da Covid-19. Postagens nas redes sociais afirmavam que a pandemia era exagerada pelos esquerdistas, que os hospitais na verdade estavam vazios e que pessoas foram enterradas vivas para aumentar a taxa de mortalidade. O próprio presidente insistiu, apesar das evidências médicas que o contrariam, que medicamentos de “tratamento precoce” como a hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina são eficazes contra a COVID-19. Mais de 600 mil pessoas morreram de COVID-19 no Brasil, número superado apenas pelos Estados Unidos.
Juntas, essas investigações aumentaram a possibilidade de que Bolsonaro possa virar alvo de um impeachment pelo Congresso ou seja declarado inelegível para as eleições de 2022. Em resposta, o presidente vem alertando com mais veemência de que uma “ruptura” na democracia brasileira pode ser iminente. Ele também intensificou seus ataques às instituições brasileiras, com foco na Justiça e, especificamente, em Moraes e Luis Roberto Barroso, ministro da Justiça que preside o TSE. O presidente reuniu centenas de milhares de apoiadores para protestar contra o Supremo Tribunal Federal em 7 de setembro, dia da independência do Brasil, e declarou que nunca mais cumpriria uma ordem de Moraes, o que seria ilegal. A declaração gerou uma resposta enérgica de membros de outros ramos do governo, incluindo Barroso, que refutou as alegações de Bolsonaro de fraude eleitoral ponto por ponto, chamando-as de “retórica vazia”.
Poucos dias depois, Bolsonaro pareceu recuar, dizendo em uma carta que suas ameaças ao STF ocorreram “no calor do momento” e prometendo respeitar as outras instituições de governo. Mas poucos observadores esperavam que a trégua seria duradoura.
Sem soluções fáceis
No Congresso, os legisladores também tentaram revidar, apresentando pelo menos 45 projetos de lei com o objetivo de conter a disseminação das fake news. Mas muitas das medidas acarretam riscos significativos. Várias modificariam o Marco Civil da Internet, mudando suas regras sobre porto seguro, que atualmente dá imunidade a provedores e plataformas de Internet caso o conteúdo de terceiros viole alguma lei. Isso exporia as empresas a grandes riscos jurídicos e transformaria seus modelos de negócios. Outras propostas buscam forçar as redes sociais a remover conteúdo questionável no máximo 24 horas após um usuário registrar uma reclamação (atualmente, eles só removem conteúdo que viola seus termos de acordo ou para cumprir uma ordem judicial). Alguns projetos de lei permitiriam que usuários que compartilham notícias falsas sejam processados como criminosos, mesmo que não saibam que estão espalhando mentiras. Existe até uma proposta para limitar a mil o número de usuários que podem receber uma mensagem pelo WhatsApp. Enquanto isso, alguns membros do Congresso e do judiciário estão pressionando as plataformas de tecnologia para que expulsem Bolsonaro e seus aliados de suas redes, da mesma forma que muitas fizeram com Donald Trump no início de 2021.
Ciente da ameaça, Bolsonaro está tomando suas próprias medidas. Em 6 de setembro, ele assinou um decreto que tentava proibir as plataformas de redes socias de bloquear usuários (como aconteceu com Trump) ou retirar a maior parte do conteúdo sem uma ordem judicial. O New York Times classificou o decreto como “a primeira vez que um governo nacional impede que empresas de internet retirem conteúdo que viole suas regras”. O decreto foi considerado inconstitucional alguns dias depois e rejeitado pelo Congresso, mas a maioria dos especialistas acredita que Bolsonaro continuará tentando usar todas as ferramentas à sua disposição para proteger seus aliados.
Nesse ínterim, as empresas de mídia social se sentem presas entre Bolsonaro e seus oponentes, enfrentando as ameaças duplas de regulamentação onerosa ou de um ambiente de impunidade que diminuiria ainda mais a confiança do público em suas plataformas. “Nossa missão é organizaras informações e torná-las úteis para o mundo”, diz Marcelo Lacerda, diretor de Políticas Públicas e Governo do Google no Brasil. “Se tivermos conteúdo ruim, corremos o risco de prejudicar nosso relacionamento com os usuários, criadores de conteúdo e anunciantes que apóiam nosso negócio.” Em algumas plataformas, nem mesmo uma regulamentação clara é possível. O WhatsApp é a plataforma de mídia social mais popular do Brasil e, portanto, onde a maioria das notícias falsas se propaga, mas as mensagens são criptografadas. Isso beneficia Bolsonaro, diz Traumann. “Na América, eles restringem Donald Trump ao bani-lo do Twitter e do Facebook”, mas se fizerem isso com o Bolsonaro, não vão mudar nada, porque ele ainda pode alcançar os brasileiros através do WhatsApp. Muitos bolsonaristas começaram a migrar para o Telegram, que consideram ainda menos provável de ser regulamentado.
As propostas de regulamentação complicariam a forma como as redes operam, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, argumenta Marcel Leonardi, advogado da Internet que representa muitas empresas de mídia social no Brasil. No momento, o WhatsApp não tem um sistema operacional capaz de limitar o alcance de uma mensagem a mil usuários, diz Leonardi. Teria que criar um, e aplicá-lo em todo o mundo, só porque o Brasil exige. Em vez disso, diz Leonardi, as empresas deveriam poder continuar a desenvolver ferramentas para combater a desinformação. O Facebook e o YouTube usam uma combinação de máquinas e humanos para sinalizar conteúdo com notícias falsas. No Brasil, o YouTube retirou vídeos nos quais Bolsonaro afirma que a ivermectina cura COVID-19. O Facebook removeu dezenas de contas que espalharam fake news, algumas delas vinculadas a aliados de Bolsonaro e seus filhos. Até o WhatsApp conduziu investigações que levaram à suspensão de centenas de contas. As empresas de mídia social também estão trabalhando com o TSE para entender como podem combater de forma mais eficaz as notícias falsas sobre as eleições do próximo ano. No dia 16 de agosto, o Youtube acatou uma ordem do TSE de suspender pagamentos a 14 canais que alertavam sobre fraudes nas máquinas de votação.
O Google acredita que pode ajudar a combater a desinformação por outros meios. No Brasil, por exemplo, investiu 2 milhões de dólares no Educamidia, programa que ajuda professores a ensinar alfabetização midiática, e criou o Comprova, iniciativa que emprega jornalistas para desmentir notícias falsas. No entanto, as empresas de mídia social sabem que não podem fazer muito. “Entendemos a luta contra a desinformação como algo que não podemos enfrentar por conta própria”, diz Lacerda, diretor do Google. Ele acredita que os grupos formuladores de políticas devem envolver educadores, empresas de tecnologia, advogados e a sociedade civil para encontrar soluções conjuntas contra as notícias falsas.
Democracia em risco
Não está claro se isso pode evitar o que parece ser uma crise iminente em 2022. Com o índice de aprovação de Bolsonaro em mínimos históricos, as pesquisas sugerem que ele perderia as eleições de outubro para vários candidatos importantes, incluindo seu rival mais acirrado, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT. Com as costas contra a parede, Bolsonaro parece propenso a usar todas as ferramentas à sua disposição, incluindo fake news, e pode tentar incitar a violência ou minar a democracia, diz Claudio Couto, um analista político. “Para ele, é tudo uma questão de permanecer no poder”. Bolsonaro repetiu em várias ocasiões que vê apenas três saídas potenciais para si mesmo: “prisão, morte ou vitória”.
Ninguém sabe se os militares brasileiros, ou outras instituições governamentais, apoiariam Bolsonaro em uma tentativa de impor o autoritarismo. Na verdade, a única coisa que parece certa é que a desinformação continuará a corroer a fé dos brasileiros em suas instituições e na própria democracia. Em um discurso em meados de setembro, após seu último confronto com o STF, Bolsonaro suavizou a ameaça e pareceu sugerir seus planos táticos para o ano que vem. “Quem nunca contou uma mentirinha para a namorada? Se não contasse, a noite não ia acabar bem”, disse ele, arrancando risos da plateia de apoiadores. “Fake news faz parte de nossa vida.”