Este artigo foi adaptado da reportagem especial da AQ sobre alcançar a igualdade de gênero | Leer en español | Read in English
GUAXUPÉ, Minas Gerais — Ela sempre sonhou grande, talvez grande demais para esta pequena cidade produtora de café e gado nas montanhas de Minas Gerais. Então, quando fez 18 anos e chegou a notícia de que um amigo da família em São Paulo precisava de uma babá, ela aproveitou a chance — e pegou o primeiro ônibus que podia rumo ao sul.
Os anos que se seguiram foram desafiadores e por um tempo os sonhos pareceram intangíveis. Ela descobriu um dom para cuidar de crianças; mas, cruelmente, não pode ter seus próprios filhos, sofrendo uma dúzia de abortos espontâneos antes de finalmente desistir. A cidade grande deu a ela oportunidades, mas também alguns momentos difíceis. Quando recuperou as forças e economizou um pouco de dinheiro, ela abriu uma modesta loja em sua casa, no que deveria ser o quarto do bebê, vendendo saias adornadas com bijuterias que ela mesma desenhava e costurava.
Na casa com frequência faltava água mas também um mofo crônico. Muitas vezes, o tecido embolorava antes que ela conseguisse terminar o trabalho. O marido, um metalúrgico com um emprego de meio período e um tanto recluso, reclamava constantemente das pessoas que entravam e saíam. E então, a loja logo fechou, outro elo em uma crescente corrente de ambições não realizadas. Mas amargura nunca foi de sua natureza; ela dava de ombros, soltava uma risada triste e partia para a próxima. “Fazer o quê, né?” , dizia. Voltar a trabalhar como babá ou empregada doméstica, foi o que ela decidiu — pelo menos por um tempo.
E foi assim que Silvia entrou em nossas vidas, por volta de seu aniversário de 42 anos, no início de 2014. Trabalhar para uma família americano-brasileira como a nossa, com dois filhos pequenos que gostavam de comidas exóticas como sesame chicken e Frito pie, e gritavam de um lado a outro do apartamento em uma mistura de inglês e português, poderia ser difícil. Mas Silvia se adaptou imediatamente e — em um sinal auspicioso do que estava por vir — rapidamente aprendeu inglês o suficiente para navegar pelo livro de receitas que tínhamos na prateleira, fazendo anotações cuidadosas a lápis ao lado das receitas e convertendo as medidas do sistema imperial para o métrico. Cinco dias por semana, nossa casa ecoava com a voz de cantora de Silvia, suas gargalhadas contagiantes e o chiado diário da panela de pressão, produzindo outro lote de seu delicioso feijão.
Um dia, Silvia mencionou que tinha aprendido a fazer bolos enquanto trabalhou por um curto período para um bufê, e até vendeu alguns para amigos. Erica, minha esposa, perguntou se ela poderia fazer um para o aniversário do nosso filho.
Claro, disse Silvia.
Bem, poderia ser um bolo do Batman?
Me mostre algumas fotos do que você quer, Silvia respondeu, eu vou fazer o melhor que puder.
O resultado final foi tão sublime, tão absolutamente perfeito, que do outro lado do apartamento ouvi Erica gritar de alegria — “Meu Deus!” O bolo exibia a marca do Batman sobre um horizonte escuro e sinistro e, quando finalmente decidimos cortá-lo, descobrimos que também era delicioso. Isso confirmou o que já havíamos começado a suspeitar: estávamos na presença de um verdadeiro gênio, alguém abençoado com talento artístico concedido por Deus e uma habilidade incrível.
Uma série de pequenos milagres logo aconteceu. Em rápida sucessão, ela fez um bolo com uma menina loira sentada em sua cama, bolachas em formato de trevo verde, um duende comestível e — finalmente — uma produção elaborada com um túnel, trilhos de trem e aviões que só poderia ser descrita como a realização do maior sonho do nosso filho de sete anos.
Os convidados nas nossas festas ficavam extasiados, e a notícia se espalhou rapidamente. Silvia virou sensação da noite para o dia, vendendo bolos para a pequena comunidade de expatriados de língua inglesa de São Paulo, com mais encomendas do que ela podia entregar.
Estes foram os melhores dias, para todos nós. Passamos longas horas na cozinha, trocando receitas e contando histórias, enquanto assistíamos Silvia trabalhar obsessivamente em suas criações, que ficavam cada vez mais ambiciosas em escala e detalhes. Ela e Erica ficaram particularmente próximas. Fora do trabalho, Silvia às vezes ia conosco para recitais de piano e jogos de futebol nos fins de semana e tratava nossos filhos como se fossem seus. Mas depois de apenas um ano e meio juntos, em meados de 2015, recebi uma oferta de trabalho fantástica em Nova York. Nossos filhos estavam chegando a uma idade em que queríamos que estivessem mais próximos da família. Era hora dos Winters deixarem o Brasil.
Dar a notícia à Silvia foi a parte mais difícil e todos nós ficamos chateados. Logo depois, ela me chamou de lado e perguntou baixinho: Posso ir com vocês? Tentei explicar que nunca poderíamos pagar por uma babá nos Estados Unidos como tínhamos feito no Brasil, que a economia era tão drasticamente diferente; que seria impossível obter um visto. Era verdade, mas parecia mentira. Ela assentiu, apesar de triste — Fazer o quê, né? — e começou a procurar um novo emprego.
Uma tarde, enquanto empacotávamos nossas coisas, perguntei a Silvia se ela pensava em fazer bolos em tempo integral, ou até abrir uma loja. Ela sorriu e disse que sua irmã e vários amigos a encorajaram a fazê-lo. Mas ela não conseguia trabalhar em sua própria casa — já tinha tentado antes sem sucesso -— e não tinha dinheiro para fazer mais nada. Quando perguntei se ela poderia pedir um empréstimo em um banco, ela sacudiu a cabeça e soltou uma gargalhada, como se fosse a coisa mais engraçada que já tinha ouvido.
“Ah, seu Brian, eles nunca dariam dinheiro para alguém como eu.”
E então Silvia encontrou outro emprego como empregada doméstica, com uma família de amigos expatriados na nossa vizinhança. Mesmo antes da nossa partida, ela parecia diminuída de alguma forma, como se uma luz dentro dela estivesse se apagando. Suas postagens no Facebook tentavam manter uma atitude feliz: “Triste hoje, mas temos que seguir em frente! Deus no comando sempreeeee!!! ” Em minhas viagens ao Brasil a trabalho, muitas vezes fui vê-la. Ela parecia mais magra, desolada. Uma vez, perguntei se ela ainda estava fazendo bolos. “Quem tem tempo para isso?” disse, encolhendo os ombros. “Talvez um dia.”
“Ela descobriu este dom”
Anos depois, continua sendo extremamente difícil, talvez impossível, para mim descrever nosso relacionamento com Silvia. Certamente, não há nada na experiência moderna dos Estados Unidos que capte isso. Ela era nossa funcionária, é verdade. Ela também era nossa amiga — e de alguma forma, mais do que isso também. Eu me pergunto se, como na longa tradição brasileira de empregadas domésticas e babás, pessoas entram em sua casa e passam longos dias junto com sua família e compartilham suas vidas e às vezes tornam-se tão parte de sua família quanto uma tia, prima ou irmã. Sei que há questões de classe e poder — “seu Brian” — e de raça, de história do país envolvidas em tudo isso. Ou … talvez não fosse realmente nenhuma dessas coisas. Talvez Silvia fosse apenas uma daquelas almas mágicas que entram em nossas vidas, e era simples assim. O que posso dizer, sem hesitar, é que o vínculo que nós cinco forjamos foi maior do que qualquer rótulo, ou mesmo maior que o curto tempo que passamos no Brasil. Sabíamos que tínhamos um relacionamento que duraria para sempre.
Imagine a nossa dor quando, em 2017, recebemos a notícia de que Silvia havia falecido repentinamente. Não havia detalhes, apenas alguns posts enigmáticos de seus amigos e familiares no Facebook. Erica trocou algumas mensagens com a irmã dela, Luciana, mas não conseguiu muitas informações. Precisávamos saber mais.
Vários meses depois, fiz a viagem de cinco horas de São Paulo a Guaxupé, Minas Gerais, e encontrei sua mãe e irmã em uma churrascaria para almoçar. O clima era de alegria; estávamos todos felizes por voltar a falar de Silvia. Com picanha e macarrão, elas riram e me contaram como Silvia pegava o ônibus noturno de São Paulo para casa, só para ir a festas da família, dançar até as 2 da manhã e depois ir direto para a rodoviária para voltar para São Paulo. Mostrei a elas algumas fotos nossas juntos e de seus bolos. Eles reagiram com “oohs” e “aahs”, deleitadas com as imagens.
“Ela descobriu esse talento, esse dom, ela não sabia que tinha”, disse Luciana. “Ela queria fazer algo com ele, talvez voltar aqui. Teria sido ótimo, sabe? Mas ela não conseguia achar como. … E aí, não deu tempo.”
Inevitavelmente, a conversa acabou por lembrar a morte de Silvia. Elas também não sabiam muito. Disseram que Silvia havia entrado em uma unidade de atendimento de urgência na manhã de quinta-feira e morreu por volta das 3 da manhã do dia seguinte. A causa, segundo o atestado de óbito: câncer de cólon. Ela tinha 45 anos. “Se ela sabia que estava doente, não contou a nenhum de nós”, disse Luciana. “Não tínhamos ideia.”
Quando saímos do restaurante e nos demoramos na calçada do lado de fora, sua mãe, que estivera tão calada, tão estoica o tempo todo, pegou minha mão e deu-lhe um tapinha reconfortante. “Ela amava vocês”, disse ela com um grande sorriso. “Ela amava vocês.” Nós também a amávamos, é claro. Mas até hoje, não consigo me livrar da sensação de que falhamos com Silvia; que poderíamos— deveríamos — ter feito mais para tentar ajudá-la. Eu imagino inúmeras versões alternativas dessa história em minha cabeça, nas quais tentamos mover céus e terras para conseguir um visto para que ela se mudasse aos EUA; em que reunimos nossos amigos para fazer um pequeno empréstimo com algum capital inicial para uma loja de bolos. Mas agora tudo acabou. A única coisa que resta, suponho, é tentar ajudar a criar um mundo onde fatores como gênero, raça e classe não mais impeçam talentos magníficos como o de Sílvia de serem plenamente realizados. Onde “alguém como eu” não seja um risco, mas um ativo.