Este artigo foi adaptado da edição impressa da AQ sobre o combate à corrupção na América Latina. | Read in English
Este artigo foi atualizado para corrigir o tempo servido pelo entrevistado em regime fechado.
Rio De Janeiro — “A vida no crime não é fácil como as pessoas pensam.”
Durante três décadas, Claret trabalhou arduamente como operador de câmbio – no mercado negro. Como doleiro, ele esteve envolvido em dois dos mais notórios esquemas de corrupção do Brasil nos últimos anos. Delatado por um ex-cliente que foi pego durante as investigações da operação Lava Jato, Claret foi preso em 2017 pela Interpol no Uruguai, para onde tinha se mudado quando as autoridades pareciam prestes a descobrir o papel da sua operação no escândalo do Banestado.
Claret serviu 14 meses na prisão e agora está em liberdade condicional depois de fazer um acordo de delação. Os termos o obrigam não apenas a usar uma tornozeleira eletrônica, mas também a dar aulas para policiais, promotores e outros agentes da lei sobre como funcionam os esquemas de doleiros.
De acordo com o Ministério Público, em seu auge, para evitar ser detectado o grupo de Claret utilizava uma rede offshore com 3.000 empresas em 52 países. A operação movimentava bilhões de dólares e o ex-doleiro diz que eles só foram pegos porque o ex-cliente os entregou num acordo de delação. “Até hoje não há prova material do que fizemos — somente o que nós mesmos decidimos entregar às autoridades.”
Claret, agora com 58 anos, concordou em conversar com a AQ no escritório de seu advogado no centro do Rio de Janeiro. Um homem alto e atlético, que chegou a sonhar em ser cinegrafista subaquático, descreveu de forma direta como entrou na criminalidade e como seus esquemas eram possíveis. Sua história mostra como políticas governamentais, como os controles de divisa das décadas de 80 e 90 no Brasil, podem ter consequências não intencionais — e como novas tecnologias, como o Bitcoin, estão sendo incorporadas aos crimes financeiros.
Essa entrevista foi traduzida e editada para concisão e clareza.
AQ: Como você começou como doleiro?
Vinicius Claret: Eu sempre quis trabalhar em finanças. Meu pai trabalhava em um banco e às vezes me levava com ele. Eu sempre lidei com números minha vida toda, gostava disso desde garoto. Estudei ciências contábeis e fui trabalhar num banco onde fiz um pouco de tudo: escriturário, departamento de crédito. Em meados dos anos 80, fui promovido a gerente e transferido para uma filial em Ipanema, e foi lá que comecei a comprar dólares embaixo da mesa, para atender a um cliente. Na época, a política (do governo brasileiro) permitia que as pessoas que viajavam comprassem apenas 1.000 dólares em travelers cheques. Ninguém pode viajar só com isso! Então os clientes me pediam para encontrar mais alguns dólares em dinheiro para eles. Eu achei um cara que fazia entregas na agência, e foi assim que eu comecei.
AQ: Mas você era funcionário do banco — esse era um negócio “paralelo”?
VC: Eu recebia uma comissão, mas a notícia se espalhou. Era “vai falar com Vinicius”. Depois uma agência de turismo e de câmbio se mudou pro outro lado da rua. Eu passei a mandar tanto negócio para eles, que eles decidiram me contratar. Isso foi em 1987. E isso era normal no Brasil: todo mundo que tinha dinheiro sobrando comprava dólares, no país inteiro. Nossos clientes eram executivos, empresários de todas as áreas, artistas. A inflação chegou a cerca de 80% no fim dos anos 80, a compra de dólares era uma maneira de segurar seu dinheiro, era uma ferramenta de poupança. Era algo comum, até o dia em que deixou de ser. Mas aí você começa a achar desculpas para permanecer no negócio. Parei em 2015, logo após a Lava Jato começar. Nosso negócio encolheu quase 90% na época.
AQ: Quando sua empresa se tornou uma operação de lavagem de dinheiro?
VC: Nós não lavávamos nenhum dinheiro. Ele permanecia sujo. Para lavar dinheiro é preciso fazer alguma operação oficial, e esse tipo de operações nós nunca fizemos. Nosso negócio era câmbio.
Depois que a inflação foi controlada nos anos 90, e a taxa de câmbio ficou mais estável, mas ainda alta, o mercado do dólar se tornou uma ferramenta de evasão fiscal para importadores e construtoras, um comprando e outro vendendo. Hoje não sei como está funcionando porque as construtoras estão fora, mas os importadores ainda estão por aí. Onde eles estão comprando dólares? Eu só posso ver um caminho. Não posso comentar por causa do meu acordo com os promotores, mas existem maneiras de fazer esse tipo de coisa. E eles eram nossos concorrentes no passado.
AQ: O que pode conter esse fluxo?
VC: Precisamos acabar com essa mística em torno da moeda estrangeira. Quanto mais nós (regulamos) o câmbio em nossa economia, mais controle teremos. As pessoas se admiram: “Você tem dólares!”, como se fosse algo sobrenatural. Era sempre algo obscuro, oculto — e esse mito funcionava a nosso favor.
A maioria das pessoas não entende o mercado de câmbio, algo que em outros países é supernormal. Mesmo investigadores muitas vezes não sabem como funciona esse mercado. Mostramos o nosso sistema de contabilidade e muitos deles ainda não sabem do que estamos falando! Alguns assistiram nossas palestras mais de uma vez. As pessoas deveriam ser autorizadas a ter contas em dólares (dentro dos bancos brasileiros) e esse deveria ser um mercado transparente. Eu já vi algumas mudanças. Eu leio as notícias e vejo que algumas regras mudaram.
Mas agora há outro problema, esse Bitcoin, e isso é completamente absurdo. Uma moeda que não precisa ser declarada é um absurdo total.
AQ: O que você diz às autoridades que elas deveriam fazer?
VC: Uma forma de coibir muito importante é acabar com a circulação de dinheiro — forçar as pessoas a usar os bancos. O nosso mercado era baseado em dinheiro vivo e essa foi justamente a dificuldade toda, em 30 anos de trabalho, de chegar até nós. Essa é uma solução, não que vá acabar com a corrupção mas tirando o dinheiro vivo a corrupção vai deixar rastro. Com as fintechs hoje fica fácil bancarizar as pessoas, mesmo em um país grande como o Brasil. (As autoridades) também deveriam fazer campanhas (de conscientização pública) porque a população precisa saber que não pode passar cheques ao portador. Você não sabe onde esse cheque vai parar, talvez com um traficante de drogas? Nós recebíamos montanhas de cheques de pequenas quantias, que nunca poderiam ser rastreados. Um ou dois mil cheques todos os dias, imagina?
AQ: Mas sua operação também usava transferências bancárias, não apenas dinheiro. O que estava faltando para que as autoridades te detectassem?
VC: Muitas pessoas simplesmente pararam de se preocupar com o cumprimento de regras. Não deveria ser possível para uma pessoa (com conexões com políticos) abrir uma conta bancária no exterior. Não sou eu falando isso, (o ministro da Justiça) Sérgio Moro mesmo disse que os caras da Petrobras tinham contas no exterior e a Odebrecht fazia pagamentos diretamente nelas.
E o que dizer de uma conta de caixa 2? Uma pessoa abre uma conta, movimenta milhões e você é gerente e não verifica? O compliance só é bom se for seguido. Pessoas me disseram que pagavam a auditores para aprovar coisas. Se o auditor pode ser comprado, então você já tem um buraco. Esses bancos com os quais trabalhávamos não tinham compliance, ou se tinham, não era bem feito. A única maneira de evitar isso é assegurar que os bancos sejam punidos, multados. A pior coisa na terra para um banqueiro é um prejuízo, para eles é como um atleta que perdeu uma luta ou um jogo.
Mas a punição pode não ser tão importante quanto encontrar soluções para os problemas que incentivam a corrupção. Todo mundo fala sobre lavagem de dinheiro, evasão fiscal. Mas muitas pessoas sonegam impostos ou fazem importação sub-faturada porque os impostos são altos demais — e sem isso eles não consegueriam sobreviver.