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A aula vai começar: uma escola brasileira abre as portas para estudantes venezuelanos

Como uma escola em Roraima tenta — com certo sucesso —  receber seus novos moradores.
Simone Catão, center, and her students at Olavo Brasil Filho school.Fatima Carvalho
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Este artigo foi adaptado da edição impressa da AQ sobre o migração na América Latina. | Read in English | Leer en español

BOA VISTA, Roraima  —  No momento em que você entra na escola Olavo Brasil Filho, nesta capital fronteiriça na região norte, percebe que algo incomum está acontecendo.

“Ame seu vizinho — se você não é capaz, ao menos respeite-o”, diz um cartaz pendurado na parede.

“Duas culturas e uma nação”, diz outro.

“Sua presença nos enche de felicidade”, lê-se num terceiro cartaz, a frase escrita em torno de um coração vermelho brilhante.

Há apenas três anos, a escola tinha só seis alunos venezuelanos. Mas esse número subiu para 63 em 2019 e, quando a visitei no início de 2020, 92 dos 859 alunos da escola vinham do país vizinho. O aumento reflete uma tendência observada em grande parte da América do Sul — colocando uma enorme pressão sobre os serviços públicos, incluindo as escolas, que ainda estão descobrindo como assimilar os recém-chegados.

Em contraste com outras regiões do continente, no Brasil o idioma representa uma barreira significativa para os venezuelanos que chegam. E as crianças definitivamente não estão imunes à xenofobia frequentemente vista na sociedade em geral. Mas os professores fazem o possível para que os migrantes se sintam em casa — e os cartazes na parede são apenas uma pequena parte do esforço. Simone Catão, 43, é a carismática professora de matemática por trás do esforço de integração. “No começo, os venezuelanos aqui sofriam de baixa autoestima e as brincadeiras não tão agradáveis ​​que os adolescentes costumam fazer não ajudavam. Tínhamos que fazê-los se sentir bem-vindos”, diz Catão.

Como parte do método, a professora adicionou às lições habituais temas como a hiperinflação e as complexidades do sistema de taxas de câmbio da Venezuela. “Eu digo às crianças: vamos fazer algumas comparações, quanto custa um quilo de carne aqui e quanto na Venezuela? Sua família teria condições de comprar carne se você estivesse na Venezuela?

Ela também pede aos alunos que se ajudem com espanhol e o português e que compartilhem sua herança cultural. Em uma horta improvisada no pátio da escola, os alunos plantaram hortelã, salsinha e pés de laranjeira e romã, com etiquetas caprichadas em português e espanhol. A cantina da escola começou a servir arepas venezuelanas, os estudantes brasileiros ensinam ritmos de bateria aos recém-chegados, e pais de alunos venezuelanos foram convidados a ensinar sua dança tradicional, o joropo.

Os esforços estão dando resultado?

Como os próprios alunos da escola dizem —  é complicado.

Mas também está claro que o esforço de integração não só em Roraima, mas em outros países da América Latina, está apenas começando.

Novos amigos — mas alguns bullies também

Como muitos outros países, o Brasil fechou oficialmente suas fronteiras com a Venezuela em meio à pandemia de coronavírus em março. Mas a maioria dos especialistas espera que o fluxo de pessoas continue em uma fronteira que é, em sua maior parte, selva e extremamente difícil de ser fechada na prática. Mesmo que o fluxo fosse interrompido repentinamente, mais de 60 mil venezuelanos já estão vivendo em Roraima, aumentando a população do Estado em mais de 10%.

A maioria fugiu das regiões mais pobres do leste da Venezuela, como Anzoategui, apenas para chegar ao Estado mais pobre do Brasil em termos de PIB. O impacto em praticamente todos os aspectos da vida tem sido imenso. O desemprego em Roraima mais que dobrou. As filas em hospitais e clínicas aumentaram. O número de homicídios caiu, mas aumentaram os registros de pequenos crimes e roubos. E durante minha visita de duas semanas, ao conversar com dezenas de professores, pais, alunos e administradores, ficou evidente que o sistema educacional está sobrecarregado.

Em 2019, mais de 10 mil estudantes estavam matriculados nas escolas de Roraima, mais que o triplo do total no ano anterior, um salto impulsionado pelo fluxo de famílias que atravessavam a fronteira. “A situação está muito além das nossas expectativas”, diz Leila Soares de Souza Perussolo, secretária de Educação do Estado.

Os maiores desafios, é claro, são enfrentados pelos próprios venezuelanos. Para Alvin Malave, de 12 anos, a adaptação à nova vida no país adotivo tem sido difícil.

“Ele está menos nervoso agora, mas esteve bastante emocional”, diz a mãe, Malvin Malave, 45, que trabalha informalmente como manicure. Ela e o marido, que faz bicos de pintura e construção, conseguem “sobreviver”, diz ela à AQ.

O acesso à educação foi um dos principais fatores que trouxeram os Malave ao Brasil no ano passado. Apesar da escassez de alimentos, o casal, que tem três filhos, relutou em deixar os filhos adultos para trás, mas ela diz que as perspectivas de educação de Alvin estavam se deteriorando rapidamente. “Não havia professores. Todos se demitiram. Eles ganham mais dinheiro vendendo coisas nas ruas”, diz ela.

Malave ficou animada pelo fato de sua sobrinha de nove anos, que havia se mudado com a família para Boa Vista dois anos antes, ter aprendido português rapidamente. Mas para Alvin, um garoto tímido que prefere o tênis à obsessão brasileira pelo futebol, tem sido mais difícil.

Entre lentas colheradas de açaí, Alvin me diz que gosta das aulas de história e de ciências, mas que o português era difícil de aprender e que ele não conseguiu fazer amigos brasileiros. “Eles são um pouco fechados”, diz.

Dilmaris Carolina Durán, cabeleireira de 31 anos da Ilha Margarita, chegou ao Brasil no ano passado, mas seus quatro filhos mais novos ainda não encontraram lugar nas escolas primárias locais. José Gregorio, seu filho de 14 anos, acabou de começar o ensino médio, mas precisa andar uma hora e meia para chegar até a escola. Muitos brasileiros têm se ressentido em relação aos migrantes recém-chegados, e estudantes locais relutam em se misturar com os novos alunos, em alguns casos, maltratando os colegas estrangeiros.

“Eu tive que sair da minha primeira escola. As crianças começaram a me beliscar”, diz Yoriexi Gloirisbel Pena Cordero, de 12 anos, que migrou com a família de El Tigre há dois anos. “Foi horrível.”

A voz dos alunos

Quando me reuni com estudantes brasileiros e venezuelanos na escola Olavo Brasil Filho, no entanto, quase toda a conversa foi animada. Primeiro, conheci crianças de 11 e 12 anos e, mais tarde, adolescentes entre 15 e 17 anos. Nos dois grupos, os alunos disputavam entre si para falar sobre aspectos favoráveis.

“Eles nos chamam de venecos”, diz, rindo, Luis Alfonso Gobaria Gonsalvez, estudante de 15 anos que veio da Venezuela em 2017. “Mas não senti nenhum preconceito. Fui muito bem-recebido e tenho amigos brasileiros.” Danielle Santana Araújo, de 16 anos, natural de Roraima, diz que depois de um começo difícil, as coisas melhoraram na escola. “Brasileiros e venezuelanos ficavam em grupos separados. Mas as coisas melhoraram, principalmente quando eles começaram a falar português.”

Vários dos jovens brasileiros estavam ansiosos para compartilhar os poemas que escreveram para uma competição que a escola realizou no ano passado. “Eu sou humano, não sou um animal, sou um refugiado procurando um lugar para ficar”, recita Karina Freire da Silva, de 11 anos.

Logo, ela diz olhando para a câmera do meu celular: “Nós os ajudaremos. Eles podem contar com a gente.”

Yasmin Camille Costa, de 12 anos, de Boa Vista, e a melhor amiga, Sofía Ginet Rodríguez, que migrou da cidade venezuelana de San Félix há dois anos, posaram alegremente para fotos de braços dados. “Há muito preconceito, mas está diminuindo. Agora somos todos amigos”, diz Costa.

Alguns quilômetros de distância dali, perto do centro de Boa Vista, está a escola Lobo D’Almada. Lá, a professora Maria Bernadete Oliveira lançou uma iniciativa contra o assédio moral e a discriminação. “Queríamos fazer as crianças venezuelanas se sentirem bem-vindas na escola”, diz Oliveira, de 47 anos. Assim como Catão, Oliveira quer convencer outras escolas a adotar esquemas semelhantes.

Mas os recursos disponíveis para as escolas simplesmente são inadequados para atender à demanda. O financiamento para a educação é ajustado de acordo com o número de estudantes no sistema. No entanto, o orçamento é calculado de acordo com o número de matrículas do ano anterior. Com o número de estudantes venezuelanos aumentando tão rapidamente, os administradores das escolas estão batalhando para acompanhar o ritmo.

Grande parte do bom trabalho que vi depende da boa vontade e energia de professores como Catão e Oliveira. Catão, uma fonte irreprimível de energia, diz que precisou convencer os colegas a participar. “Deu muito trabalho no começo, mas no fim todo mundo na escola está participando”, diz ela. Com o dinheiro doado por um político local, Catão conseguiu publicar uma pequena cartilha, Duas culturas e uma Nação, detalhando os projetos que desenvolveram, para incentivar outras escolas a adotarem a ideia. “O progresso realmente depende do esforço de indivíduos”, diz João Paulo Pires, jornalista local e editor do site Correio de Lavrado.

Nervos à flor da pele

O governo federal está financiando a recepção emergencial de migrantes por meio do programa Operação Acolhida, gerenciado pelo exército. Cerca de 40 milhões de dólares em fundos foram alocados em 2019 e outros 65 milhões de dólares em 2020 para 11 acampamentos de emergência em Boa Vista e na cidade fronteiriça de Pacaraima. Quase 6 mil venezuelanos estão alojados em fileiras organizadas de barracas especialmente projetadas para os refugiados, feitas de aço leve e plástico resistente ao calor.

O exército também faz parceria com outras agências para ajudar os migrantes a encontrar casas e empregos nas regiões mais favorecidas do sul do Brasil, e cerca de 33 mil venezuelanos se mudaram nos últimos dois anos. Mas o número de migrantes que atravessavam a fronteira continuava aumentando. O coronel Carlos Cinelli, chefe de equipe da Operação Acolhida, disse à AQ que, em 2019, uma média de 523 venezuelanos por dia chegou ao Brasil através de Pacaraima. Eles tendem a vir de regiões mais isoladas do leste e do sul do país e geralmente têm menos conexões familiares no Brasil que outros migrantes da região.

Isso é uma grande preocupação para o governador de Roraima, Antonio Denarium, que, durante sua campanha nas últimas eleições, havia defendido o fechamento da fronteira. No fim de 2018, o impacto da onda de migração levou Roraima a uma crise, forçando sua antecessora, Suely Campos, a parar de pagar funcionários públicos. Isso, por sua vez, desencadeou uma greve da polícia e uma intervenção federal de curta duração e sem precedentes no Estado. Denarium, agricultor e um dos dois governadores do país que aderiu ao novo partido do presidente Jair Bolsonaro, a Aliança pelo Brasil, disse à AQ que seu governo conseguiu trazer as contas do Estado de volta ao azul. Mas ele diz que os serviços de saúde, educação e segurança para os venezuelanos custam a Roraima o equivalente a 10% do seu orçamento anual.

De fato, o Estado está tomando medidas legais para recuperar o dinheiro do governo federal. “Há muitos venezuelanos aqui em Boa Vista e isso está impactando nossos serviços públicos. A população de Roraima é muito hospitaleira, mas há um limite”, diz. “[As pessoas aqui pensam que] tudo o que vem de Brasília é para os venezuelanos e nada para eles. Eles estão ficando realmente fartos.”

Felizmente, a violência entre brasileiros e venezuelanos é algo raro. O último grande incidente aconteceu em agosto de 2018, quando um grupo de moradores de Pacaraima destruiu um acampamento, forçando mais de mil migrantes a atravessar a fronteira.

Mas há muitas evidências de discriminação moderada. Ouvi histórias sobre clientes de restaurantes que não queriam ser atendidos por garçons venezuelanos e pequenas empresas que se recusam a empregar trabalhadores venezuelanos. Malave, a manicure venezuelana, chorou ao descrever experiências semelhantes. “Há muita xenofobia aqui. Eu vivo essas experiências e me sinto desrespeitada”, diz ela.

De volta à escola Olavo Brasil Filho, em meio a todo otimismo, o argumento do governador ainda encontra eco. “Muitos brasileiros sentem que não recebem os mesmos benefícios que os venezuelanos e estão em desvantagem”, diz Somara da Silva, de 16 anos. “Dizemos às pessoas aqui que a maioria dos venezuelanos é gente do bem. Mesmo assim, um Estado não pode absorver um país inteiro. Nós gostamos dos venezuelanos, mas o Estado está sobrecarregado. Tem que ser controlado.”

Richard Lapper é escritor e consultor freelance especializado em América Latina. Ele é membro associado do Royal Institute of International Affairs, em Londres, e membro do conselho editorial da Americas Quarterly. Ele ocupou vários cargos seniores na redação do Financial Times de Londres entre 1990 e 2015 e foi editor para a América Latina do jornal britânico entre 1998 e 2008.



Tags: Educação, escolas, estudantes, fronteira, imigrantes
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