Esse artigo foi adaptado da reportagem especial de AQ sobre a crise na educação | Read in English | Leer en español
A COVID-19 causou interrupções em sistemas educacionais do mundo todo, mas na América Latina, os desafios gerados pela pandemia têm sido particularmente difíceis. As escolhas feitas pelos governos de toda a região levaram ao período médio de fechamento de escolas mais longo que em qualquer outra parte do planeta. Mas quando as salas de aula finalmente reabriram, a desconfiança dos pais em relação à capacidade dos governos de controlar a crise levou muitos a optar por manter seus filhos em casa. Ao mesmo tempo, o acesso limitado à internet e um atraso nas habilidades digitais talvez tenham reduzido a eficácia de formas alternativas de aprendizado na América Latina mais que em outros lugares. Ao todo, o acesso à educação e os índices de matrícula na região podem retroceder dez anos ou mais como resultado da pandemia – com graves consequências para o crescimento econômico, a estabilidade política, os governos democráticos e os esforços da região para reduzir a pobreza e a desigualdade. Desde a “década perdida” dos anos 80, a educação latino-americana nunca havia enfrentado uma ameaça tão profunda quanto agora.
Há três caminhos que os governos, a sociedade civil, pais e professores podem seguir como resposta. Se extraírem lições do passado e escolherem com sabedoria, a pandemia pode ser um trampolim para elevar a educação da América Latina a níveis ainda melhores do que antes. Mas se optarem pelo caminho equivocado, a estagnação e as perdas no aprendizado vistas na década de 80 certamente retornarão – e piorarão. A boa notícia é que muitos na região já estão demonstrando que há caminhos potenciais a seguir. Do Brasil ao México, muitos governos locais, universidades e a iniciativa privada enfrentaram a COVID-19 de forma colaborativa e inovadora. Mas um futuro realmente melhor exigirá uma dose ainda maior de ambição.
Em recuperação
Para entender para onde a educação na América Latina precisa ir, é necessário primeiro entender até onde ela chegou desde a década de 80, quando cortes orçamentários feitos em resposta à crise de dívida externa da região levaram a uma estagnação nos índices de matrícula e no desempenho dos alunos. Não é de surpreender que o impacto foi sentido de forma mais aguda pelas famílias de baixa renda, à medida que as desigualdades nos gastos com educação se aprofundaram e os alunos sem acesso ao ensino privado ficaram ainda mais para trás. Em resposta, governos da região apoiaram reformas que produziram ganhos visíveis, incluindo um fortalecimento nos requisitos da educação obrigatória, o que levou a um aumento significativo nos níveis de escolaridade em toda a região. Em 2020, a América Latina desfrutava de índices de matrículas de quase 100% no ensino fundamental e médio. No geral, o número de crianças fora da escola caiu de 15 milhões em 2000 para 12 milhões em 2018, segundo a Unesco. Nesse período, a parcela de alunos que concluíram o ensino fundamental subiu de 79% para 95%, enquanto o índice de conclusão do ensino médio básico subiu de 59% para 81% e o do ensino médio completo aumentou de 42% para 63%, todos acima das médias globais.
Apesar desses avanços, ainda existem lacunas significativas. Uma em cada três crianças entre quatro e cinco anos na região não frequenta a pré-escola. Apenas quatro em cada cinco estudantes permanecem matriculados entre as idades de 13 e 17 anos, e 14% dos alunos dessa idade ainda estão na escola primária como resultado de repetência crônica. As oportunidades educacionais permanecem estratificadas de acordo com o nível socioeconômico das famílias: mais da metade das crianças de famílias de baixa renda em áreas rurais não completa os nove anos de educação básica. No geral, metade dos estudantes latino-americanos se encontra abaixo dos índices mínimos de leitura aos 15 anos, de acordo com avaliações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A COVID-19 exacerbou esses problemas e agora ameaça reverter os ganhos recentes.
Três caminhos à frente, e uma grande oportunidade
Paradoxalmente, a crise atual pode encorajar um ciclo de reformas para enfrentar esses desafios e tornar a educação mais inclusiva e mais relevante para as necessidades de um mundo em transformação e complicado. Isso, porém, só acontecerá se as partes interessadas em todos os lados da equação adotarem a abordagem correta. As opções existentes são: negação, contenção ou ambição.
A primeira delas é a pior de todas. Formuladores de políticas no caminho da negação podem pensar que o seu trabalho estará concluído quando as escolas forem totalmente reabertas. Mas isso significa que eles estariam ignorando os estragos profundos que dois anos de pandemia já causaram nos sistemas educacionais: a perda nos níveis de aprendizado, o desengajamento e a desistência dos alunos, o esgotamento dos professores e uma crescente falta de confiança do público nas autoridades da educação e nos governos.
Isso é especialmente verdadeiro para os estudantes de famílias de baixa renda, onde as limitações no aprendizado em casa foram agravadas pelos efeitos sanitários, econômicos e sociais da pandemia. A desigualdade no acesso à internet e nas habilidades digitais entre alunos e professores de baixa renda e seus colegas mais abastados oferecem exemplos importantes. Embora no geral, 77% dos jovens de 15 anos na América Latina tenham internet em casa, o porcentual é de apenas 45% para estudantes no quintil de renda mais baixa, de acordo com o Banco Mundial.
O caminho da contenção, enquanto isso, consideraria o status quo como um objetivo digno. A meta seria apenas recuperar as perdas de aprendizado e queda nos índices de matrícula diretamente relacionadas à pandemia, talvez por meio de uma combinação de horas letivas adicionais e aprendizado híbrido (remoto e presencial), embora essas soluções tenham que ser guiadas por novas restrições orçamentárias. Mas antes da pandemia, 30% dos empregadores na América Latina culpavam uma força de trabalho com baixa escolaridade como uma séria restrição à produtividade, em comparação com 20% dos empregadores em todo o mundo. Então, por que simplesmente tentar voltar onde estávamos antes?
A visão ambiciosa, por outro lado, teria como objetivo não só reconstruir a educação, mas melhorá-la. A meta seria uma total renovação do ensino, para prover aos alunos as habilidades necessárias para que eles e suas comunidades possam ser impulsionados a melhores circunstâncias no futuro.
Esse renascimento da educação na América Latina se basearia na busca de três objetivos simultâneos: melhorar a eficácia do ensino enquanto a pandemia atual persistir, recuperar e reconstruir as oportunidades educacionais pós-pandemia e tornar os sistemas educativos mais resilientes a interrupções futuras e mais bem equipados para preparar os alunos da região.
Atingir esses objetivos exigirá primeiro um diagnóstico completo de como o contexto educacional mudou com a pandemia. Educadores e governos precisarão desenvolver novas estratégias de ensino que possam responder a essas mudanças e ser adaptadas a futuros surtos. Finalmente, os países latino-americanos obviamente precisarão melhorar as habilidades dos professores, administradores, alunos, famílias e sistemas educativos em geral. Um alinhamento e coerência entre esses objetivos e ações políticas serão fundamentais, unindo todos os envolvidos na equação da educação para que busquem estratégias comuns. Uma abordagem fragmentada ou em silos – na qual os professores são treinados a usar plataformas digitais, mas a conectividade doméstica permanece inalterada, por exemplo – não será suficiente. Simplesmente tentar recuperar o terreno perdido, adicionando conteúdo a currículos já sobrecarregados também não funcionará . Em vez disso, os planos de aprendizado precisam ser acelerados e suas prioridades, redefinidas. Isso pode parecer utópico, mas já há sinais de que mudanças ambiciosas começam a colher alguns frutos.
Da crise, uma oportunidade
Em um estudo recente, meus colegas e eu identificamos uma série de inovações educacionais desenvolvidas durante a pandemia. Muitas delas estavam alinhadas com uma visão ambiciosa para o futuro da educação recentemente proposta por uma comissão internacional da Unesco.
No Brasil, por exemplo, a falta de liderança nacional na área da educação levou os governos estaduais e organizações da sociedade civil a adotar suas próprias políticas de ensino durante a pandemia. Isso incluiu a criação, em tempo recorde, de um programa de aprendizagem no Estado de São Paulo para sustentar a educação por meio de uma variedade de sistemas. Uma plataforma online de apoio à aprendizagem e avaliação dos alunos foi complementada com a televisão, o rádio, WhatsApp e pacotes educativos impressos. De forma crucial, o pacote também inclui programas para ajudar professores e diretores de escolas a melhorar suas próprias habilidades. O projeto foi resultado de uma colaboração inédita entre o governo estadual, a Universidade Federal de Juiz de Fora e o apoio de diversos empresários e empresas do Estado.
Enquanto isso, governos estaduais do México desenvolveram melhorias em um programa nacional de educação na TV. Empregados estatais em Guanajuato, por exemplo, desenvolveram um programa online de guias interativos de estudo em casa e passaram a fornecer feedback regular em tempo real aos alunos.
Na Colômbia, o Comitê Internacional de Resgate (IRC) desenvolveu materiais educativos baseados em áudio para atender às necessidades de aprendizagem social e emocional de estudantes venezuelanos refugiados no país, uma área da educação que foi altamente prejudicada pela pandemia. Também na Colômbia, a Alianza Educativa, uma organização sem fins lucrativos que administra 11 escolas conveniadas em Bogotá, transformou seus currículos tradicionais de aprendizagem social e emocional em uma estratégia escolar para as crianças e suas famílias em comunidades vulneráveis.
A lista continua: uma avaliação das habilidades digitais de professores na Costa Rica, uma plataforma de código aberto para melhorar a formação de professores na Guatemala, um programa de desenvolvimento online para professores na zona rural do Peru. O denominador comum em todos esses programas é parceria: inovações institucionais resultantes de novas colaborações ou da ampliação de parcerias já existentes. Essa tendência é vista em toda a região. As universidades da América Latina, especialmente, mostraram um forte compromisso com o bem comum, apoiando as escolas públicas durante a pandemia de maneiras que podem ter efeitos duradouros sobre como essas instituições definem suas missões no futuro.
No Chile, por exemplo, o presidente Sebastián Piñera pediu aos reitores da Universidade do Chile e da Pontifícia Universidade Católica que se unissem para ajudar o governo a desenvolver uma série de respostas políticas para mitigar os efeitos da pandemia. A Universidade Católica ajudou os sistemas escolares públicos a redefinir as prioridades de seus currículos, com foco em ajudar os professores a entender e expandir seu papel no apoio ao desenvolvimento social e emocional dos alunos.
A variedade de exemplos sugere que o renascimento da educação pode parecer diferente de país para país. Mas há uma estrutura. A COVID-19 levou a uma das crises mais profundas da história da educação na América Latina. Mas também criou novas parcerias entre atores públicos e privados e produziu inovações sem precedentes. Manter a prioridade na melhoria da educação, na sustentação da liderança coletiva e no aprofundamento da inovação ajudaria a restaurar a fé não apenas nas instituições educacionais, mas também no governo, no regime democrático e, acima de tudo, em um futuro melhor.