Quando a economia da Argentina entrou em colapso no fim de 2001, todo mundo tinha certeza absoluta de quem era a culpa. Distante, hermético e cada vez mais propenso a balbuciar as palavras em seus discursos públicos, o presidente Fernando de la Rua havia conseguido desordenar completamente as contas públicas do governo em apenas dois anos no poder. As churrascarias e discotecas estavam vazias, o desemprego estava se aproximando de 20 por cento e o dinheiro era tão escasso que grande parte da economia tinha se revertido ao sistema de escambo — com a população trocando cortes de cabelo por alimentos, pagando o aluguel com a herança da família. Com o Natal se aproximando, uma onda de saques tomou conta dos supermercados e protestos contra o governo se tornaram violentos. Finalmente, na noite de 20 de dezembro, De la Rua escreveu uma carta de renúncia, murmurou algumas palavras ao seu secretário sobre coletar os sabonetes de seu banheiro privado, escalou as escadas até o telhado do palácio e partiu em um helicóptero.
Perfeito, disseram os argentinos. Agora podemos sair dessa bagunça. Mas o próximo presidente ficou tão imobilizado diante do desafio que acabou renunciando também, disparando uma reação em cadeia que acabaria por ver cinco presidentes diferentes em apenas duas semanas. Consternados, manifestantes argentinos adotaram um novo slogan — ¡Que se vayan todos! ou “Que saiam todos!”. Batendo panelas e frigideiras, milhões foram às ruas para exigir que toda a classe política — o presidente, o Congresso, todos — deixassem o poder para permitir uma renovação total.
Passados 15 anos, o Brasil atravessa hoje um momento similar. A economia não está tão ruim quanto estava a da Argentina naquela época, e ninguém ainda embarcou em um helicóptero. Mas o público brasileiro parece estar chegando à mesma conclusão — de que ninguém no cenário político atual é competente ou limpo o suficiente para lidar com a enorme crise que o país enfrenta.
Até dez dias atrás, parecia que o país tinha optado por uma solução: fazer o impeachment da presidente Dilma Rousseff e transferir o poder para seu vice-presidente, Michel Temer. Uma pesquisa nacional mostrou que 68 por cento dos brasileiros apoiavam o impeachment, e milhões foram às ruas para exigir exatamente isso. Sentindo o cheiro de sangue, o partido de Temer, o PMDB, convocou uma coletiva de imprensa para anunciar que estava rompendo com Rousseff. Os líderes do PMDB jogaram as mãos para o alto gritando “Fora Dilma!” e passaram a falar abertamente sobre a agenda econômica para um futuro governo Temer.
Mas o tiro saiu pela culatra — e como. A visão de figuras tarimbadas como Eduardo Cunha, legislador que enfrenta múltiplas acusações de corrupção, relembrou a todos que vários líderes do PMDB estão talvez tão manchados quanto Rousseff por escândalos e a má gestão econômica dos últimos anos. Ironicamente, o clima que tomou conta do país na sequência foi melhor descrito por um juiz do Supremo Tribunal Federal pego de surpresa por um microfone aberto. “Meu Deus do céu, essa é nossa alternativa de poder?”, o juiz Luis Roberto Barroso foi ouvido dizendo a um grupo de estudantes. “Não há para onde correr. Isso é um desastre.”
Eu voltei ao Brasil durante a última semana, e se há um consenso hoje, é isso. Em um protesto na Avenida Paulista, em São Paulo, na noite da última sexta-feira, o grito de guerra era “Fora Todos Eles!”, frase quase idêntica ao slogan da Argentina de 2001-03. Um jovem manifestante exibia uma imagem de todos os políticos proeminentes do Brasil, tanto da esquerda quanto da direita — Rousseff, Temer, Cunha, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidenciável da oposição Aécio Neves — e, em seguida, rasgou-a ao meio com um grito primitivo, inspirando uma torcida calorosa da multidão. No domingo, a Folha de S.Paulo, o maior jornal do país, publicou um editorial intitulado “Nem Dilma nem Temer“, conclamando ambos a renunciar. Alguns nos círculos políticos e empresariais brasileiros começam a sussurrar que, dada a ausência de uma liderança clara, poderia levar até uma década para a economia se recuperar totalmente.
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É chocante ouvir esse tipo de pessimismo, porque as pessoas que apostam contra o Brasil no longo prazo costumavam a perder. De fato, apesar de toda a conversa ao longo dos anos sobre “o país do futuro, que sempre será do futuro”, entre 1900 e 1980 só o produto interno bruto do Japão cresceu mais que o do Brasil entre as principais economias. As duas últimas décadas também registraram grandes avanços. Períodos difíceis, como 1992-93, 2002 e 2008 todos passaram de forma mais rápida e indolor do que a maioria esperava. Um crescimento moderado e resistente parece ser o estado natural do Brasil.
No entanto, se você tenta traçar os possíveis caminhos para o futuro, a situação fica sombria muito rápido.
Para começar, ainda é perfeitamente possível que Rousseff consiga concluir seu mandato até o Ano Novo de 2019. Apesar das fantasias de conselhos editoriais locais e estrangeiros, Rousseff nunca vai renunciar — ela vem dizendo a assessores que presidentes brasileiros anteriores que foram retirados do poder, Getúlio Vargas e João Goulart, renderam-se muito facilmente. Ao mesmo tempo, desde que Lula assumiu efetivamente o controle do dia-a-dia do governo de Rousseff no mês passado, ele conseguiu diminuir o êxodo dos aliados da coalizão governamental. Essa fidelidade tem um preço: O Estado de S.Paulo informou nesta semana que o governo abandonou suas metas fiscais modestas em favor do financiamento de projetos eleitoreiros para legisladores que o apoiam e evitou aumentos de impostos impopulares. Se for verdade, o preço será inflação mais alta — e uma recuperação econômica ainda mais distante.
Quanto ao impeachment … indignados, Rousseff e seu Partido dos Trabalhadores denunciaram o processo como um “golpe”, comparando o Brasil de hoje com o último golpe militar em 1964. Mas a analogia adequada pode realmente ser 1998. Esse foi o ano que os deputados no Congresso dos Estados Unidos votaram a favor do impeachment do presidente Bill Clinton, acusando-o de perjúrio relacionado a um romance com uma estagiária da Casa Branca. Isso foi um golpe? Não. Era uma razão bastante fraca para tirar um presidente democraticamente eleito do cargo? Sim.
Todo mundo se abismou com a corrupção massiva na Petrobras durante a liderança de Rousseff, e com o peso das evidências acumuladas pelo juiz Sergio Moro e sua equipe. Os promotores dizem que têm provas de que dinheiro sujo da Petrobras foi utilizado para financiar a reeleição estreita de Dilma em 2014. Você poderia concluir que essa parece ser uma razão muito boa para ir adiante com o impeachment! Mas, evidentemente, o caso que está sendo usado contra Rousseff não tem absolutamente nada a ver com a Petrobras e a eleição de 2014. Em vez disso, ele gira em torno de truques de contabilidade utilizados pelo governo de Rousseff para cumprir as metas orçamentais — táticas que foram utilizadas também, embora em uma escala muito menor, por seus antecessores. Por que construir o caso em torno disso? Porque se fosse sobre fundos ilícitos de campanha, o PMDB provavelmente cairia também — já que Temer foi companheiro de chapa de Dilma.
Até a semana passada, as pessoas pareciam dispostas a tolerar as maquinações em Brasília, desde que elas terminassem tirando Rousseff do poder. Mas depois que o PMDB fez feio no seu ato público, foi como se o país inteiro olhasse para o abismo e dissesse — “Esperem, estamos realmente certos de que queremos fazer isso? Nessas circunstâncias? Com esses caras?” Não é por acaso que, desde então, a defesa do impeachment perdeu muito de seu ímpeto — qualquer contagem confiável, tanto privada quanto pública, atualmente mostra que a oposição está bem aquém dos votos de que necessita.
Mesmo que o processo de impeachment prossiga, agora parece que um governo Temer não seria a panaceia que muitos investidores esperavam. Colocar a economia brasileira nos trilhos é relativamente simples —vai ser necessário austeridade, uma abertura ao comércio, e uma guerra contra a burocracia que sufoca as pequenas e grandes empresas. Mas todas essas medidas serão impopulares no curto prazo. E qualquer coisa que não seja um impeachment limpo vai incendiar sindicatos, movimentos sociais e parlamentares que acusarão de “golpe” um governo Temer desde o primeiro dia, opondo-se a cada medida “cruel” ou “neoliberal” que ele proponha. Ao mesmo tempo, Temer está em uma posição de fraqueza antes mesmo de começar. As pesquisas mostram que apenas 16 por cento dos brasileiros esperam uma melhora da situação caso ele se torne presidente. Há sempre a possibilidade de que ele surpreenda, é claro. Mas essa parece ser uma receita de um governo fraco que vai ter dificuldades para angariar apoio a qualquer reforma e terminará se arrastando até 2018. É um cenário bem parecido com o Brasil de hoje.
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Então, meu Deus do céu, onde isso vai parar?
No curto prazo, francamente, é uma incógnita. O vai-e-vem diário, incluindo a ordem do Supremo Tribunal Federal na terça-feira para iniciar um processo de impeachment contra Temer, é desgastante. Em tempos de caos, porém, eu tento me lembrar de uma coisa — não apostar contra a Lava Jato, a investigação na Petrobras. O fluxo constante de provas contundentes não parece estar chegando ao fim — os promotores dizem que fizeram até agora apenas 30 por cento do trabalho no caso. Se isso for verdade, então parece provável que o atual governo ainda cairá sob o peso das alegações. Se isso vai ocorrer por meio de impeachment, ou pelo processo conhecido como cassação, que removeria tanto Rousseff quanto Temer do poder, ou através da mais recente ideia circulando pelos corredores de Brasília, com o Congresso convocando novas eleições … quem disser que sabe está mentindo.
No longo prazo, no entanto, o resultado parece mais claro. A raiva e o desespero da sociedade brasileira em relação à pior recessão em 80 anos estão sendo dirigidos não a um ou dois líderes ou partidos, mas a toda a classe política. Quando a próxima eleição ocorrer, seja em 2016 ou 2018, é quase certo será uma votação ao estilo “¡Que se vayan todos!”. Na Argentina, isso produziu um governador pouco conhecido da Patagônia chamado Nestor Kirchner, que ganhou a presidência com apenas 22 por cento dos votos. No Brasil, poderia ser qualquer pessoa de um elenco de figuras que se opõem às elites governantes que inclui a ambientalista Marina Silva, o ex-ministro Ciro Gomes, Jair Bolsonaro, da bancada direitista “Boi, Bíblia e Bala”, ou alguém totalmente novo. A História diz que o Brasil vai superar essa fase, vai se recuperar rapidamente e retomar a sua marcha rumo ao progresso. Mas atualmente é preciso muita fé para acreditar nisso.
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Winter é editor-chefe da Americas Quarterly